O sentido trivial da expressão “má-fé” pode ser, como encontramos nos dicionários da língua portuguesa, algo como intenção dolosa ou falsidade. O Houaiss – que deve mesmo ser o melhor dicionário da língua portuguesa – define-a como “disposição de espírito que inspira e alimenta a intenção maldosa, conscientemente praticada”. Normalmente, dizemos que age de má-fé quem mente, dissimula, conduz-se de maneira hipócrita e esconde segundas intenções por
detrás de seus atos. A má-fé é uma propriedade do hipócrita, do canalha, do covarde. É uma espécie de nuance da mentira. É o que poderíamos chamar de cinismo. A expressão, contudo, assume um sentido específico e filosófico na obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Sartre (1905-1980) foi um pensador francês que desenvolveu seu pensamento em diversos
No entanto, é possível que o sujeito esteja realmente convencido de que é rancoroso porque foi pobre, ou porque teve uma família desestruturada (ou, quiçá, porque é geneticamente/astrologicamente determinado a ser rancoroso, e tem assim uma índole rancorosa, etc.). Nesse caso, o sujeito terá escolhido uma crença errada, uma crença que não ilustra o sentido radical de sua liberdade de auto-determinação. E é essa crença errada que é a má-fé.
O que é a má-fé?
A má-fé é, essencialmente, um erro. Um erro lógico, uma incoerência. Não se trata, para Sartre, de simples mentira ou de falsidade. Não é dissimulação, não é hipocrisia. É um erro. Um erro que esconde a condição radical de liberdade do homem. Um erro que foi escolhido. Uma crença equivocada sobre a condição humana, crença que foi livremente abraçada pelo sujeito. A crença no determinismo (idéia de que todos os eventos estão
encadeados e se seguem com uma necessidade lógica) que deságua em uma atitude fatalista (uma resignação frente aos eventos – bons ou maus – que acontecem) é uma conduta típica de má-fé, por exemplo.
Por que ocorre a má-fé?
Sartre afirma que o homem é liberdade pura, absoluta, radical. Isso quer dizer que o homem não possui uma essência que lhe defina, como possuem os objetos. Isto é: o homem não é uma coisa. Um livro é um livro, sempre funcionará como um livro, foi
criado com a finalidade de guardar nele as informações impressas. Um garfo é um utensílio criado com a finalidade de auxiliar na alimentação. O homem, no entanto, não possui essa “finalidade”. Não foi “criado”, à semelhança das coisas que cria. Ainda que seja criado por um Deus, somente esse Deus poderia dizer qual é a finalidade do homem, o sentido de sua existência no mundo. E se esse Deus existe, está em silêncio desde sempre.
[A Bíblia, o Alcorão, os “sinais de Deus”, nada disso serve
como prova de Deus: afinal, é o sujeito que determina qual é o sentido desses objetos e “sinais”, o sentido é doado pela consciência do sujeito, não há nada nesses eventos e objetos que provem realmente a existência de uma realidade que nos determina. Como só podemos ficar, seguramente, no nível da consciência, se quisermos nos alienar da nossa liberdade atrás de pretextos religiosos, estaremos, evidentemente, nos conduzindo de má-fé].
A má-fé surge porque, dado que somos livres, somos
absolutamente responsáveis por nossas ações. Liberdade é responsabilidade. Se sou livre para agir, tenho necessariamente de responder por essa ação. E a responsabilidade é um peso insustentável, gera uma angústia evidentemente desagradável, da qual o homem fará o que for necessário para livrar-se. E é para não assumir a própria responsabilidade (que a experiência da angústia revela) que o homem escolhe uma crença ou outra que, por qualquer razão, o “liberta da liberdade”.
Mas essa conclusão
é um erro. Não há como libertar-se da liberdade. O homem é livre sempre, porque tem – ou sempre pode vir a ter/recuperar – consciência de suas possibilidades. Sabe, sempre, que sua vida poderia estar sendo diferente do que está sendo se assim tivesse escolhido. Aqui há um ponto comum entre a má-fé de Sartre e a má-fé da qual falamos habitualmente: as segundas intenções. Afinal, quando escolho uma crença conveniente, confortável, que silencie minha angústia, sei que estou fazendo isso –
mentindo para mim mesmo. Mas não admito. Isto é: minto para mim mesmo que não estou mentindo para mim mesmo. Só que essa mentira é absolutamente transparente. Complicado? Tentemos ilustrar.
Imagine um estudante de filosofia. Um sujeito que sente-se um fracasso. Em algum momento, ele encontra a obra de Schopenhauer e descobre que este filósofo responsabiliza um Ser metafísico, que ele chama de Vontade, por todas as desgraças do mundo. Descobre que esse filósofo diz, mesmo, que todas as nossas
vontades são coisas que não escolhemos (aqui está a crença errada que ataca a ideia de liberdade) e que nos governam. E, finalmente, que tudo acontece necessariamente, nada é por acaso, o mundo funciona exatamente da maneira que deve funcionar.
Esse estudante escolhe acreditar em Schopenhauer. Se olhar para si mesmo, examinar seus pensamentos, terá de admitir que a teoria de Schopenhauer lhe é agradável porque lhe proporciona um “sedativo filosófico” para suas angústias. Mas se ele fizer
isso, terá de rejeitar Schopenhauer e voltar à sua angústia. Então, evidentemente, ele não faz isso. Inventa outra mentira: a de que Schopenhauer está certo em função da correspondência de suas teorias com a realidade. Só que essas mentiras são absolutamente transparentes à um exame de consciência – que se pode fazer a qualquer momento. Basta que se deseje fazê-lo, se deseje encontrar as próprias falhas de caráter, etc.
Má-Fé e Mentira
A má-fé é, sim, mentira. Mas não
é a mentira cínica, mentira a outro. É uma mentira de si a si mesmo – e isso a distingue da má-fé definida no dicionário como falsidade. Para Sartre, a má-fé
é
Há uma conseqüência moral nesse conceito de má-fé: se as minhas crenças erradas são assim, tão transparentes, eu só as mantenho por um ato de decisão que já tomei e não submeti à crítica. E se eu não fiz isso, foi porque não quis. Foi porque decidi manter-me na condição confortável, sem angústia e, assim, absoluamente irresponsável de minhas próprias escolhas.
A Boa-Fé e a liberdade vazia.
Pode ser o caso de eu ter lido
Sartre e não poder mais, de jeito nenhum, negar minha liberdade. Agora, sei que sou livre e fico afirmando, o tempo todo, minha liberdade. Assim, sou de boa-fé. Só que essa boa-fé é uma expressão muito refinada da má-fé. Afinal, afirmar uma liberdade vazia sem realizá-la é determinar-se como livre para não precisar, na prática, fazer nada.
No romance “Idade da Razão”, Sartre ilustra essa situação na figura no personagem Mathieu Delarue. Mathieu NÃO casa, NÃO filia-se a um partido, etc.
Ele se define como livre mas não faz escolhas, exceto a escolha da omissão/negação diante de cada caminho. Não realiza a liberdade que torna-se, assim, uma liberdade vazia.
A má-fé, assim, é um tema central não apenas para a Psicanálise Existencial, bem como para uma possível filosofia moral – que Sartre nunca chegou propriamente a publicar. Ao fim e ao cabo, aparentemente, a única possibilidade de escapar à má-fé é assumir a própria responsabilidade pelos atos, mesmo que isso implique em uma angústia. Assumir a própria angústia é agir de forma autêntica e realizar a própria liberdade.