Por que a adoção de uma criança adolescente por um casal homoafetivo pode ser uma experiência com efeitos positivos?

1. Introdução

  • * O presente artigo tem por base a dissertação de mestrado elaborada e defendida pelo autor na Escola (...)

1A adoção, nos termos do artigo 1974.º/1 Código Civil (CC), tem como principal objetivo realizar o superior interesse da criança (apud Sottomayor, 2009: 47 e ss.). O interesse da criança tem sido encarado pela maioria da doutrina e jurisprudência como um conceito indeterminado, cuja concretização e valoração é feita pelo aplicador do Direito, o que pode levar a uma subjetividade e arbitrariedade extremas. Para combater este risco, as ciências sociais têm determinado que a manutenção da estabilidade da vida familiar e social da criança e o respeito pelos seus laços afetivos e emocionais são realidades que permitem tornar o conceito de interesse da criança mais objetivo, limitando a discricionariedade judicial. É função do Estado garantir a cada criança uma família que lhes dê a segurança, os afetos e a estabilidade necessária ao seu desenvolvimento. Assim sendo, o instituto da adoção não deve ser uma realidade tipificada ou rígida, que só seja possível dentro dos moldes da família tradicional, como substituição da procriação biológica(Sottomayor, 2004: 46). Tendo por base o referido e justificando-se através do superior interesse da criança, fará sentido barrar-se a possibilidade de os casais homossexuais acederem à adoção?

2. Pressupostos do problema

Conceito de família e discriminação

2Apesar da introdução do princípio da igualdade dos sexos na Constituição da República Portuguesa (CRP) e da reforma do CC de 1977, os comportamentos e as práticas sociais não acompanharam a mudança legislativa, continuando muitas famílias a viver num patriarcado implícito (Sottomayor, 2011: 20), organizado sob o princípio da autoridade do pater familias, proliferando a convicção da superioridade da família heterossexual, onde o biologismo triunfa sobre o afeto e o casamento se assume como a relação familiar por excelência. Pensamos, no entanto, que a noção de família como base da sociedade não pode ser reduzida à família conjugal enquanto instituição. Optamos, antes, por eleger as relações de cuidado, independentemente da sua conformação e contexto, como a base da sociedade, do humanismo e da continuação da espécie. Hoje em dia, a parentalidade desprende-se da vertente biológica, sendo suplantada pela vertente afetiva ou social. Olhar para as crianças exclusivamente do ponto de vista biológico é negar-lhes a dimensão de pessoa e ignorar as suas necessidades específicas. Apesar de a verdade biológica ser o ponto de partida da parentalidade, são as verdades sociológica e afetiva que surgem como a realidade determinante na vida e no bem-estar emocional de uma criança. É neste contexto que a adoção, enquanto vínculo semelhante à filiação biológica mas independente dos laços de sangue e assentando numa verdade afetiva, social e emocional, deve ser protegida. O que realmente importa não é imitar laços biológicos, mas sim recriar e construir os laços emocionais e afetivos presentes numa relação entre pais e filhos. A adoção é uma forma de garantir e proteger o superior interesse da criança e permite ao Estado escolher quem poderá cumprir esse papel com mais eficácia e dedicação, diferentemente do que acontece na filiação biológica. Deste modo, facilmente se conclui que não é por um casal ser homossexual que este deve ser, a priori, excluído da adoção, pois, aqui, não se trata de criar uma situação substitutiva da filiação biológica mas sim de criar uma relação que acautele e defenda os interesses da criança (Fernandéz, 2005: 422). Apesar disso, sempre existiu e continua a existir uma hostilidade social e judicial para com os casais homossexuais que pretendem constituir família, sendo-lhes vedada, a priori, por via legislativa, a possibilidade de criarem uma criança, presumindo-se que não são candidatos idóneos e duvidando-se das suas intenções e capacidades. Terá alguma justificação esta ideia preconcebida? A resposta a esta pergunta remete-nos necessariamente para as perceções sociais da homossexualidade como algo necessariamente limitativo das capacidades socioafetivas de um ser humano e para a obrigação de questionarmos, de forma neutra e sem preconceitos, a legitimidade desta ideia, aceitando refletir unicamente à luz de dados científicos.

3. O caso português

3.1. Critérios de seleção dos candidatos a adotantes

3O fundamento da adoção reside, tal como todas as relações de filiação, no superior interesse da criança. Contudo, os adultos que pretendem adotar são muito mais “controlados” pelo Estado do que os pais biológicos. Se nos processos de adoção o superior interesse da criança é levado ao seu extremo máximo, assumindo o Estado e os órgãos oficiais um verdadeiro papel fiscalizador, procurando selecionar candidatos ideais, já no âmbito de relações biologicamente constituídas, o Estado assume um papel extremamente passivo, resignando-se com o facto de haver um vínculo biológico e dando sucessivas e renovadas oportunidades a famílias biológicas negligentes. Assim sendo, a maximização do superior interesse da criança apenas no contexto das candidaturas à adoção permite criar situações potencialmente discriminatórias para as pessoas que pretendem adotar quando, na realidade, o único móbil dos candidatos a adotantes é o desejo de serem pais, desejo este em tudo semelhante ao dos pais biológicos.

4Em virtude do princípio da igualdade e não discriminação constitucionalmente consagrado (artigo 13.º da CRP), parece-nos que um homossexual poderá candidatar-se à adoção singular desde que preencha os requisitos gerais da lei (artigo 6.º, n.º 2 do Decreto-lei n.º 185/93, de 22 de maio). Reconhecemos que o facto de a homossexualidade ser ainda encarada como um estigma é suscetível de conduzir, na prática, mesmo sem proibição legal, a que seja vedado a um homossexual o acesso ao instituto da adoção por não passar no teste da idoneidade, de acordo com os juízos discricionários dos organismos oficiais que intervêm neste processo. Contudo, tal decisão da Segurança Social representaria sempre uma violação da CRP, que proíbe a discriminação com base na orientação sexual (artigo 13.º, n.º 2), estando vedado recorrer-se à orientação sexual como critério para interpretar o significado do conceito legal de “idoneidade para criar e educar um menor”.

3.2. Evolução Legislativa dos direitos familiares pessoais dos homossexuais

3.2.1.Lei 7/2001 de 11 de maio (alterada pela Lei n.º 23/2010 de 30 de agosto)

5Em Portugal, podem também adotar duas pessoas casadas há mais de 4 anos e não separadas judicialmente de pessoas e bens ou de facto, se ambas tiverem mais de 25 anos (artigo 1979.º, n.º 1). É ainda permitida a adoção a pessoas que vivam em uniões de facto, desde que preencham os requisitos exigidos para as pessoas casadas, nos termos do artigo 7.º da Lei 7/2001. Esta lei veio pela primeira vez reconhecer alguns direitos familiares pessoais aos homossexuais, equiparando os efeitos das suas uniões aos efeitos das uniões heterossexuais. Contudo, o legislador determinou no artigo 7.º que apenas podem adotar as pessoas que vivem em condições análogas às dos cônjuges, levando a que a adoção conjunta estivesse, assim, limitada aos unidos de facto heterossexuais, uma vez que nessa data não se previa ainda o casamento gay.

3.2.2. Lei 9/2010 de 31 de maio

6A Lei 9/2010 de 31 de maio, veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Caso a lei se tivesse limitado a esta alteração, teriam desaparecido os obstáculos legais para um casal gay adotar pois nos termos do artigo 1979.º, n.º 1, podem adotar plenamente “duas pessoas casadas”. Contudo, o legislador veio determinar, no seu artigo 3.º, que as alterações introduzidas pela mesma não podem ter por consequência a admissibilidade legal de adoção por casais do mesmo sexo, indo mesmo mais longe ao afirmar que nenhuma disposição legal em matéria de adoção pode ser interpretada no sentido de permitir essa adoção. Esta solução legal levanta, contudo, problemas em sede da sua constitucionalidade, como veremos.

3.2.3. Apadrinhamento civil

  • 1 Ver Agência Lusa (2010).

7O apadrinhamento civil é uma figura jurídica, criada pela Lei 103/2009 de 11 setembro e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 121/2010 de 27 de outubro, que veio permitir que pessoas com mais de 25 anos possam acolher uma criança ou jovem em risco, exercendo as responsabilidades parentais até à maioridade, desde que o vínculo com a família biológica não se extinga e desde que pais e padrinhos estabeleçam um compromisso de direitos e deveres. Perante eventuais dúvidas de interpretação, o próprio Governo português veio esclarecer1 que o regime do apadrinhamento não estaria aberto a casais homossexuais “devido ao entendimento pelo Estado de que as condições sociais não favorecem o desenvolvimento da criança nem a sua inclusão social”, caso fosse apadrinhada por um casal homossexual. O apadrinhamento civil apresenta, perante as figuras da guarda ou da confiança a pessoa idónea, a vantagem do seu carácter tendencialmente definitivo que permite aos padrinhos exercerem as responsabilidades parentais até à maioridade, em condições de estabilidade, enquanto as medidas supra referenciadas são, por definição, provisórias e revisíveis.

3.2.4. Projeto de Lei n.º 126/XII e Projeto de Lei n.º 278/XII

8Em 24 de fevereiro de 2012, foram apresentados na Assembleia da República dois projetos de lei com o objetivo de se obter a eliminação da proibição de casais do mesmo sexo adotarem crianças. Ambos foram chumbados por quase dois terços dos deputados em exercício de funções, sendo que o debate parlamentar se centrou no superior interesse da criança, assistindo-se a noções díspares sobre este conceito, revelando-se mais uma vez a perigosidade da sua indeterminação. Em 17 de maio de 2013 foi aprovado, na generalidade, um projeto de lei, apresentado pelo Partido Socialista relativo à figura da coadoção, permitindo-se que “quando duas pessoas do mesmo sexo sejam casadas ou vivam em união de facto, exercendo um deles responsabilidades parentais em relação a um menor, por via da filiação ou adoção, pode o cônjuge ou o unido de facto coadotar o referido menor”, o qual motivou, pela primeira vez em Portugal, uma ampla discussão sobre a matéria, nomeadamente com a tomada de posições oficiais sobre o tema, como veremos, ainda que o referido projeto tenha entretanto sido chumbado em sede de votação na especialidade.

3.3. Biologismo e direito da criança a ter uma família

  • 2 Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento de Crianças e Jovens, 2011.
  • 3 De salientar a decisão recentemente proferida no âmbito de um Processo de Promoção e Proteção do Tr (...)

9Portugal é o país da União Europeia (UE) com maior taxa de institucionalização de crianças, havendo 89382 crianças a viver em instituições e muito delas em condições de ser adotadas. Uma criança, numa instituição, cresce sem uma referência familiar, sendo as suas relações interpessoais caracterizadas pela impessoalidade dos contatos e pela falta de uma vinculação afetiva forte. Julgamos que esta situação é o fruto da mentalidade biologista dos profissionais envolvidos nos processos de promoção e de proteção, que concedem aos pais biológicos sucessivas oportunidades de recuperação, atrasando a decisão de adotabilidade da criança e dificultando a consolidação do vínculo adotivo.3

10Ao contrário da crença social dominante, não existem em Portugal mais crianças em condições de serem adotadas do que adotantes. Neste sentido, muitas vezes alega-se que permitir a adoção de crianças por casais homossexuais atrasaria ainda mais os processos de adoção dos casais heterossexuais. Tal argumento é de repudiar, pois uma diferenciação em função da orientação sexual, colocando os casais heterossexuais como os primeiros da fila, não é legítima nem justificável, refletindo uma ideia preconcebida acerca do que é melhor para uma criança e o carácter secundário dos casais homossexuais enquanto cidadãos e pais. Por outro lado, os candidatos a adotantes tendem a procurar crianças mais novas, pois existe uma ideia enraizada de que quanto mais nova for a criança mais semelhante a um filho biológico será, sendo assim mais fácil o desenvolvimento de uma natural relação de filiação. Tal ideia advém ainda da noção de adoção enquanto substituto da filiação biológica e enquanto forma de entregar crianças a casais que não podem ter filhos. Como já se viu, tal não deve ser o princípio norteador deste instituto, o qual deve, antes de mais, basear-se no processo inverso, centralizado na criança e na procura de uma família adequada às suas necessidades especiais e personalidade. A conceção da adoção como imitação da biologia faz com que crianças mais velhas, com problemas de saúde e que não sejam caucasianas tenham grandes dificuldades em encontrar pais adotivos, apesar de se encontrarem em perfeitas condições de adotabilidade. Para estas crianças resta, apenas, a institucionalização. Porque não se equaciona, atendendo ao superior interesse da criança, que algures poderá existir um casal homossexual capaz de cuidar daquela criança?

4. A constitucionalidade da Lei 9/2010

4.1. Efeitos sobre o acesso à adoção

11A proibição legislativa da adoção conjunta por casais homossexuais não é absolutamente eficaz. Na prática, existem inúmeras formas de casais e pessoas homossexuais adotarem crianças, torneando de certa forma a solução legal. Como já referido, o nosso ordenamento jurídico consagra a figura da adoção singular, pelo que permite que qualquer pessoa com mais de 30 anos possa adotar, não estando limitado pela sua orientação sexual. Em termos teóricos e perante a ausência de proibições legais na adoção singular, pode acontecer que um dos membros da união homossexual pretenda adotar o filho do seu companheiro, progenitor biológico da criança. Mesmo sem a candidatura à adoção, a criança está a ser criada por um casal homossexual mas sem a proteção legal que lhe é devida. A Lei 9/2010 tem por consequência que, se duas pessoas do mesmo sexo decidirem casar, então a adoção singular fica-lhes vedada porque o seu estado civil e a sua orientação sexual já não pode ser escondida. O companheiro, se estiver casado com o pai ou mãe da criança, para além de não poder adotar singularmente o filho/a deste/a, terá muito dificultada a adoção singular de uma terceira criança.

4.2. A proibição legal da adoção enquanto lei restritiva de direitos fundamentais

12A adoção deve ser, em primeira mão, um direito da criança a viver numa família, direito que decorre do artigo 69.º/1 CRP. Apesar de rejeitarmos uma total justificação constitucional para os casais gays invocarem o direito a adotar, o que acontece é que temos uma lei que determina que esses casais, pela sua orientação sexual, não podem adotar. Nos termos do artigo 36.º/1 CRP, todas as pessoas têm direito a constituir família. Entendemos que se deve retirar deste artigo que a ninguém pode ser vedada a possibilidade de ter filhos, quer biológicos quer adotivos. Vamos mesmo mais longe e defendemos que existe um direito, constitucionalmente consagrado, no sentido de que qualquer pessoa tem um direito a ter filhos ou a procriar (apud Campos, 2010: 98). No entanto, tal direito a ser pai/mãe nunca pode prevalecer sobre o superior interesse da criança, tendo este princípio sobretudo relevância na constituição da parentalidade voluntária, seja por Procriação Medicamente Assistida, seja através de um processo de adoção, dado que a parentalidade biológica só a posteriori pode ser controlada pelo Estado, nos casos em que a criança se encontra em perigo. O direito à adoção ou a ter filhos não consiste num direito de propriedade sobre a criança, mas sim numa responsabilidade ou num direito-dever. Relativamente às pessoas que não podem procriar, o Estado deve assegurar-lhes mecanismos alternativos de forma a garantir-lhes a possibilidade de criarem uma família.  A constituição de família faz parte do projeto de vida do indivíduo, encontrando-se estreitamente ligado ao desenvolvimento e construção da sua personalidade, direito este também consagrado no artigo 26.º da CRP. É a própria dignidade da pessoa humana, enquanto valor fundamental consagrado no artigo 1.º da CRP, que é posta em causa pela proibição do direito à parentalidade. A adoção pode surgir como forma alternativa à relação biológica de filiação. Assim, da conjugação do direito a constituir família com o princípio da igualdade, retiramos a existência de um direito a constituir família, através da adoção, em condições de igualdade. Ou seja, todo e qualquer cidadão tem direito a candidatar-se a um processo de adoção e a ver a sua candidatura aceite ou rejeitada em condições de plena igualdade com os demais cidadãos. Acontece que o nosso legislador impede os casais homossexuais de acederem a este instituto. Julgamos, assim, que a lei em causa introduz uma clara restrição de direitos fundamentais, a qual, para ser legítima, deve ser fundamentada na necessidade de proteção de um valor jurídico superior e só na medida dessa necessidade, de acordo com o princípio da proporcionalidade. A restrição de um direito fundamental só pode ser admitida nos termos previstos nos números 2 e 3 do artigo 18.º da CRP (apud Miranda, 2000: 328). Além de a restrição ter que obrigatoriamente salvaguardar o núcleo essencial do direito, a mesma só poderá ocorrer quando salvaguarde o chamado princípio da proporcionalidade na sua tripla vertente: necessidade, adequação e proibição do excesso (Andrade, 2012: 227).

4.3. Análise dos argumentos contra a adoção gay à luz dos critérios de adequação e proporcionalidade

4.3.1. Orientação sexual

13Um dos mais antigos argumentos utilizados contra a adoção gay prende-se com o receio de que uma criança adotada por um casal homossexual possa de certa forma vir a ser influenciada na sua orientação sexual, sendo a sua educação ou ambiente mais propícia ao desenvolvimento de uma orientação homossexual, com a consequência de a criança ter de suportar, ao longo da sua vida, o estigma e a homofobia da sociedade. Acontece que a orientação sexual, como já exaustivamente demonstrado pela comunidade científica, não é algo passível de ser influenciado pela convivência com pessoas de uma determinada orientação sexual. Convém relembrar que a maioria dos homossexuais teve pais heterossexuais, o que desde logo, de per si, descredibiliza a ideia de possível contágio ou influência (Green et al., 1986: 167) (Patterson, 1997: 224), (Mallon, 2004: 12). Mesmo que efetivamente houvesse uma relação de causalidade entre a orientação sexual dos pais e a das crianças por eles adotadas, a rejeição da adoção por casais homossexuais com base neste argumento pressuporia a ideia de que a homossexualidade, em si mesma, é um mal para os indivíduos e para a sociedade ou tem um carácter pernicioso e que, por isso, deve ser evitada e contida como se de uma doença maléfica se tratasse, ideias hoje completamente desmentidas pela realidade científica e social que envolve a homossexualidade.

4.3.2. Papéis de género e identidade de género

14Perpetua-se, ainda, a ideia que a criança necessita de um pai e de uma mãe para poder ter modelos de identificação de ambos os sexos, sob pena de ter dificuldades em definir o seu género ou em agir dentro dos chamados parâmetros normais do género a que pertence. Esta corrente doutrinal, para exprimir esta ideia, usa o conceito de “orfandade em duplo sentido” (Brandão, 2002: 94), uma vez que, nestas relações, haveria sempre a falta de um pai ou de uma mãe e nunca haveria um pai ou uma mãe no verdadeiro sentido da palavra, isto é, um elemento masculino ou feminino corretamente definido. Esta argumentação é uma forma de perpetuar a ideia de superioridade da família dita normal, heterossexual, composta por pais de sexo diferente, em relação a outras formas de família, não só a homossexual, mas também a monoparental, entre outras. Na verdade, todos sabemos, pela experiência da vida, que uma pessoa, independentemente do seu sexo, desenvolve em si características masculinas e femininas, podendo desempenhar com sucesso funções maternais e paternais (Sottomayor, 2004: 46). As posições que partem de noções rígidas sobre o que é ser homem e sobre o que é ser mulher representam uma forma de discriminação de género, pois pressupõem que o homem e a mulher desempenham papéis completamente diferentes e estanques, exclusivamente condicionados pelo género a que pertencem e esquecem que cada ser humano, mesmo condicionado pelo género, tem uma personalidade única e diferente dos demais. As crianças que vivem com casais do mesmo sexo estão, portanto, expostas, na sua educação e desenvolvimento, a diferentes personalidades e modelos.

  • 4 Vários estudos realizados, desde a década de 80, têm demonstrado não haver qualquer tipo de correla (...)

15Quanto aos alegados problemas de identidade género, os mesmos têm vindo a ser desmistificados por vários estudos dos mais variados setores doutrinário.4 É importante destacar, ainda, que uma criança, independentemente da conformação do seu meio familiar, não vive isolada, tendo sempre presente ao longo da sua vida diversas figuras de referência de ambos os sexos.

4.3.3. Desenvolvimento individual

  • 5 Um dos mais famosos e fiáveis estudos, tendo por base a questão da adaptação das crianças criadas p (...)

16A ideia muitas vezes perpetuada na nossa sociedade de que estas crianças seriam infelizes, de per si, por não saberem lidar com a diferença em que estão inseridas, não tem qualquer validade científica, tendo-se demonstrado que o relevante é a qualidade do vínculo afetivo e não a composição da família. Não há por isso uma relação causa-efeito entre a orientação sexual dos pais e eventuais dificuldades no desenvolvimento da criança.5

4.3.4. Relacionamento social

17O argumento mais vezes referido assenta na ideia de que as crianças com pais ou mães homossexuais terão dificuldades em estabelecer relações interpessoais com os pares devido à elevada possibilidade de virem a ser estigmatizadas pela orientação sexual dos seus pais e pelo facto de pertencerem a uma família diferente. As próprias crianças poderão sentir-se diferentes dos seus pares, tendo, por isso, maiores dificuldades em criar amizades, o que poderá levar ao isolamento social. Esta questão surge como uma possibilidade real que não deve ser de todo ignorada nem minimizada. No entanto, é importante lembrar que todas as crianças, em algum momento da vida, experimentam a sensação de serem diferentes das restantes. Muitas das crianças vivem atualmente em famílias monoparentais, birraciais, com pais divorciados ou em instituições. Outras vivem em famílias que são cultural, religiosa, étnica ou fisicamente diferentes das famílias dos seus vizinhos e dos seus amigos. Não há qualquer dúvida que essas crianças serão estigmatizadas, pois é normal que algumas crianças discriminem os seus pares pelas suas diferenças, sendo que vários estudos comprovam que as crianças demonstram uma grande força e resiliência para lidarem com estas situações, especialmente quando são oriundas de um ambiente familiar estável, independentemente da sua conformação. A sociedade vai evoluindo e as várias formas de família acompanham esta evolução. É o contacto com a diferença que irá permitir às crianças de hoje e aos adultos de amanhã aceitar a diferença e respeitá-la no futuro. Por outro lado, vedar aos casais homossexuais o acesso à adoção, por força da homofobia da sociedade sobre estas famílias, perpetua a própria homofobia.

4.3.5. Pré-conceitos familiares

18Ainda hoje se considera que a família na sua tradicional formação (pai, mãe e crianças) deve ser um dos principais valores a defender nos vários ordenamentos jurídicos. A admissibilidade da adoção homossexual iria contra esse conceito de família e seria uma forma de promover os ideais dos casais homossexuais, instrumentalizando a criança nas suas lutas, desprotegendo a unidade familiar, os valores da sociedade e pondo em risco os interesses da criança. A convicção de que famílias heterossexuais têm maior capacidade para educar e garantir o desenvolvimento psicológico das crianças é quase uma verdade incontestada pela maioria da população, o que demonstra um défice no conhecimento das reais origens da família e um défice de confiança na capacidade adaptativa e evolutiva do ser humano. Cria-se, assim, um estereótipo social do que deve ser uma família ideal.

  • 6 Vide, por exemplo, Ken Connor, ex-presidente do Family Research Council, em //www.slate.com/id (...)

19Outro argumento invocado neste debate, e sem base empírica, consiste na ideia de que um casal homossexual é incapaz de promover a tão necessária estabilidade familiar devido ao seu maior nível de promiscuidade e incapacidade de manter relações duradouras, havendo também maior probabilidade de existirem situações de violência doméstica e abuso sexual.6 Desde logo, deve-se destacar o facto de as estatísticas revelarem que a maioria dos crimes de abuso sexual de menores é praticada por homens heterossexuais (Patterson, 1995: 6). Por outro lado, apesar de fazerem parte de uma minoria e terem de enfrentar os preconceitos da sociedade, as relações homossexuais tendem a apresentar um grau de satisfação conjugal usualmente grande (Caldwell, 1982: 852), enquanto os casais heterossexuais procuram, cada vez com maior frequência, o divórcio, caracterizando-se estas relações por uma instabilidade crescente e por valores muito elevados de violência doméstica contra a mulher e maus-tratos de crianças, conforme o Relatório Anual de Segurança Interna.

20Quanto à alegada incapacidade inata dos homossexuais para serem pais, diversos estudos demonstram que ser homossexual é perfeitamente compatível com o desenvolvimento de uma parentalidade real e satisfatória. O exercício da parentalidade não é condicionado pela orientação sexual de quem a exerce, mas sim por fatores como disponibilidade, afeto, responsabilidade ou compromisso. Neste sentido, há estudos que vão para além da mera rejeição dos argumentos contra a adoção gay, advogando que esta poderá mesmo trazer benefícios para as crianças em certos domínios, em comparação com as crianças criadas por casais heterossexuais (Steckel, 1987), nomeadamente ao nível de facilidade de comunicação e diálogo.

4.4. Coparentalidade homossexual

  • 7 Ver Ropio (2012).

21Ao utilizar o argumento de defesa da família como forma de negar a adoção de crianças por casais homossexuais, esquece-se que crianças estão a ser criadas efetivamente por estes casais, seja porque a criança é filha biológica de um dos membros do casal em virtude de relação anterior ou do recurso a técnicas de reprodução medicamente assistida, ou porque simplesmente houve uma adoção singular. Estima-se que, em Portugal, cerca de 23 mil crianças estão a ser criadas por famílias homoparentais. E outros tantos adultos terão pais ou mães homo- ou bissexuais.7 Perante esta inegável realidade, não parece, de todo, ser de acordo com o interesse da criança negar a essas crianças a segurança que lhes pode proporcionar, no futuro, a adoção pelo outro membro do casal, no caso, por exemplo, de falecimento do progenitor biológico ou do adotante. Reconhecer a possibilidade de adoção do filho do outro significará não só que a criança passará a ter dois pais financeiramente responsáveis por si, mas também terá outros benefícios: esta poderá ter a nacionalidade de ambos os pais; em caso de rompimento da relação, ambos poderão ter guarda conjunta e direitos de visita; em caso de morte do pai ou mãe biológica, o outro membro do casal será legalmente reconhecido como pai ou mãe, o que vai permitir que a criança não seja retirada do seu lar familiar nem perca quer o contacto com alguém que sempre cuidou dela, quer os direitos legais, como o direito a alimentos (Dias, 2007: 48).

22A negação da possibilidade de reconhecimento legal de paternidade/maternidade de casais homossexuais para proteger a família tradicional não só é profundamente injusta, porque pune a criança por algo que lhe foge totalmente ao controlo, i.e., ter nascido no âmbito de uma relação homossexual, como é também desprovido de fundamento, uma vez que tal negação não vai alterar o facto de que este tipo de famílias existe e vai continuar a existir. Proteger a relação que a criança tem com ambos os pais e dar-lhe, perante a lei, a estabilidade e a segurança necessárias, é uma decisão que promove, por um lado, o interesse da criança e, por outro, não desprotege a família tradicional heterossexual, que mantém os seus direitos e o seu papel intocados. Foi exatamente para tutelar estas situações que foi aprovado, em 2013, o projeto de lei relativo à coadoção por casais homossexuais, situação esta já devidamente prevista para os casais heterossexuais. Ainda que o processo legislativo não tenha terminado, o mesmo permitiu trazer inolvidáveis contributos para a discussão através de novos estudos e tomadas de posição oficiais, conforme veremos.

23No extremo, alguns dos opositores (Brito, 2004: 91) da adoção gay admitem que, caso a criança se encontre numa das situações referidas, i.e., a ser criada por um pai homossexual e a viver com o seu companheiro, se deverá poder admitir ao companheiro a dita coadoção. Justifica-se esta opção pelo facto de a criança, nestas situações, ter já desde cedo convivência com a relação homossexual, circunstância que lhe permite assimilar a nova realidade sem grandes traumas ou desconfortos. Contudo, esta argumentação não tem coerência pois, se se admite que um casal homossexual possa ser idóneo para cuidar dos interesses da criança e garantir o seu desenvolvimento nas situações de facto, porque não admitir a adoção por um casal, criando uma relação ex novo? Face a esta questão, muitos têm respondido que na adoção ab initio por casais homossexuais, ninguém sabe como a criança irá reagir. Ora, sendo o pressuposto da adoção a criação de um laço ex novo, mesmo na adoção por um casal heterossexual, perfeito, ninguém sabe prever como a criança irá reagir.

4.5. Realidade técnico-científica

  • 8 Consultado a 23.09.2013, em //aappolicy.aappublications.org/cgi/reprint/pediatrics;109/2/339.
  • 9 Consultado a 23.09.2013, em //www.ama-assn.org/ama/pub/about-ama/our-people/member-groups-sect (...)
  • 10 Consultado a 23.09.2013, em //aappolicy.aappublications.org/cgi/content/full/pediatrics;109/2/ (...)
  • 11 Consultado a 23.09.2013, em //www.cwla.org/articles/cv0201gayadopt.htm.
  • 12 Consultado a 23.09.2013, em //www.lukor.com/not-soc/cuestiones/0412/21175836.htm.

24A Associação Americana de Psicologia deu o seu parecer sobre esta matéria em 2004,8 tendo especificamente condenado todos os tipos de discriminação em matéria de adoção, com base na orientação sexual dos potenciais adotantes. Este parecer veio citar e reforçar os vários estudos que demonstram que não existem malefícios para uma criança adotada por casais homossexuais, tendo ido mesmo mais longe ao afirmar que é “necessário proteger as relações entre crianças-pais através da permissão da adoção (conjunta ou singular) por casais homossexuais”. De destacar também a American Medical Association,9 que reforçou a importância máxima de se acautelar os interesses da criança permitindo a coadoção. Exatamente neste mesmo sentido, a American Academy of Pediatrics10 defende que o que uma criança necessita é de estabilidade e segurança legal que apenas poderão ser alcançadas através da permissão da adoção da criança pelo membro do casal sem ligações biológicas a esta. Por seu turno, a Child Welfare League of America afirma que “pais gays, lésbicas ou bissexuais têm exatamente as mesmas capacidades para cuidar e criar uma criança que os pais heterossexuais”.11 No mesmo sentido se pronuncia, na Europa, o Colégio Oficial de Psicólogos de Madrid12 que, em 2002, emitiu um parecer afirmando que a orientação sexual dos progenitores não é uma variável relevante no desenvolvimento da criança.

  • 13 Consultado a 23.09.2013, em //ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/oadv.pdf.
  • 14 Consultado a 23.09.2013, em //ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/mpdoc.pdf.

25Em Portugal, aquando da discussão parlamentar em fevereiro de 2012, dois importantes organismos nacionais foram chamados a pronunciar-se sobre o impedimento legal de casais homossexuais acederem à adoção. A Ordem dos Advogados, em parecer enviado à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República a 23 de janeiro de 201213 veio a concluir que “deverá ser mantido o impedimento legal de adoção […], por casais de pessoas do mesmo sexo, para salvaguardar e acautelar os superiores interesses da criança adotanda, na consideração de que as referências de um pai e de uma mãe são mais adequadas para salvaguardar e acautelar tais interesses […]”, determinando, assim, que o “superior interesse da criança fica melhor assegurado num ambiente familiar em que o casal adotante seja de pessoas de sexo diferente […]”.Num ordenamento jurídico onde a própria figura da adoção singular é prevista e regulamentada, não se afigura como devidamente sustentado um parecer que defende a manutenção do impedimento legal de casais homossexuais acederem à adoção com base, tão-só e apenas, no argumento de que uma criança necessita de um pai e de uma mãe para poder ver o seu superior interesse devidamente acautelado. Neste sentido, o Conselho Superior do Ministério Público, em parecer emitido no âmbito do mesmo procedimento,14 entendeu que a possibilidade de assumir a parentalidade por via de adoção não deve ser apreciada mediante um juízo geral e abstrato, mas, sim, tendo presente, para cada situação individual e concreta […] a personalidade, a saúde, a idoneidade e a situação económica do adotante, seja ele pessoa singular, heterossexual ou homossexual, ou casal, heterossexual ou homossexual. Aliás, o mesmo argumento valeria, por exemplo, se se considerasse, à partida, que determinadas situações genéricas, por exemplo a situação de desempregado, de deficiência ou de pertença a um grupo social, fossem impeditivos da possibilidade de adotar.

  • 15 Consultado a 25.01.2014, em //www.iacrianca.pt/pt/actualidades/noticias-geral/510-comunicado-d (...)

26No seguimento do processo legislativo relativo à coadoção, importa, desde logo, destacar o Instituto de Apoio à Criança15 que, em sede de comunicado, entendeu que “a Lei que permite a coadoção […] traduz numa vantagem para as crianças na medida em que protege relações afetivas relevantes”.

  • 16 Consultado a 25.01.2014, em //ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/ordem_psis_portugal.pdf.

27Por sua vez, a Ordem dos Psicólogos, no seu Relatório de Evidência Científica Psicológica sobre Relações Familiares e Desenvolvimento Infantil nas Famílias Homoparentais,16 veio determinar que não existem diferenças nas crianças provenientes de famílias homoparentais no que diz respeito a aspetos desenvolvimentais, cognitivos, sociais e educacionais, considerando haver um consenso científico sobre o facto da configuração familiar não ser um aspeto determinante para o desenvolvimento das crianças, mas sim a dinâmica relacional familiar. Entendeu também que as evidências científicas sugerem que as decisões sobre a vida das crianças sejam tomadas não com base na orientação sexual dos pais, mas na qualidade das suas relações com estes, afirmando o seu apoio, baseado em estudos científicos, na possibilidade de coadoção por parte de casais homossexuais, uma vez que não se encontram diferenças relativamente ao impacto da orientação sexual no desenvolvimento da criança e nas competências parentais.

4.6. Crítica da solução legal

28Tendo em conta todos os argumentos analisados, não podemos deixar de entender que não existem motivos, do ponto de vista dos direitos e interesses da criança, nem um interesse público (proteção do modelo tradicional de família), em proibir aos casais homossexuais o acesso à adoção, pelo que tal solução reveste um carácter marcadamente desadequado e excessivo, estando a solução legal atualmente prevista ferida de inconstitucionalidade por violação conjugada dos artigos 36.º/1, 13.º e 18.º CRP. Rejeitamos o argumento de que tal diferenciação poderia ser feita com base no sentido material da igualdade, que se traduz na ideia de tratar de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente (Canotilho e Moreira, 2010: 127) (Múrias, 2008: 19). A orientação sexual de alguém não é razão suficiente para fundamentar uma possível distinção quanto ao exercício da parentalidade, uma vez que o superior interesse da criança, objetivo máximo do instituto da adoção, será sempre passível de ser acautelado. Poderíamos ir ainda mais longe e afirmar que a negação às crianças criadas por casais homossexuais e às crianças institucionalizadas da possibilidade de serem adotadas significaria uma violação de outros direitos, como o direito ao pleno desenvolvimento da personalidade das crianças (artigo 25.º CRP) e o seu direito ao desenvolvimento integral (artigo 69.º/1 CRP). O próprio Estado parece que, ao fazê-lo, está a demitir-se da sua função de proteção da infância, dever este também constitucionalmente previsto no artigo 69.º CRP, uma vez que cabe ao Estado não só garantir o direito à parentalidade como promover a segurança, a felicidade e o bem-estar das crianças. Na nossa opinião, a solução legal portuguesa, ao determinar a proibição explícita de adoção de crianças por casais homossexuais, viola o artigo 8.º/2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que determina que não pode, de todo, haver ingerência por parte do Estado em matérias que digam respeito à intimidade de cada um, como é a orientação sexual, sendo a sua atuação desproporcional nos termos do artigo 14.º do mesmo diploma. 

5. Breve resenha de direito comparado

  • 17 Consultado a 21.03.2012, em //www.parl.gc.ca/information/library/PRBpubs/921-e.htm.
  • 18 Consultado a 21.03.2012, em //www.austlii.edu.au/au/legis/wa/consol_act/aa1994107/s39.html.
  • 19 Consultado a 21.03.2012, em //www.heraldsun.com.au/news/breaking-news/uruguay-votes-to-allow-g (...)

29Na África do Sul, em 2002, o Tribunal Constitucional entendeu que a “a estabilidade, o apoio e o afeto [...] podem ser proporcionados por [...] união homossexual estável”, declarando inconstitucional a legislação sul-africana que proibia os casais gays de adotarem. No Reino Unido, com a aprovação e entrada em vigor do Adoption and Children Act 2002 em 2005, qualquer pessoa capaz de oferecer um ambiente familiar saudável a uma criança poderá candidatar-se à adoção, independentemente da sua orientação sexual ou do seu estado civil. Nos EUA, não existe qualquer tipo de lei federal relativamente à matéria da adoção, pelo que cabe a cada um dos 52 estados legislar sobre esta matéria. A tendência tem sido favorável à adoção de crianças por casais homossexuais, havendo um número crescente de Estados a permiti-la, seja por via legal ou judicial. À semelhança da solução legal americana, o mesmo acontece no Canadá17 e na Austrália,18 onde determinados estados/distritos admitem a adoção gay. Além dos países mencionados, aqueles que admitem a possibilidade de adoção conjunta por casais gays são os seguintes: Holanda (2001), Suécia (2002), Andorra (2005), Espanha (2005), Islândia (2005), Israel (2005), Bélgica (2006), Noruega (2009), Uruguai (2009), Dinamarca (2010), Argentina (2010), Brasil (2010)19 e França (2013).. A Alemanha (2004), Finlândia (2009), Gronelândia (2009), Eslovénia (2012) e Áustria (2013), apesar de não permitirem a adoção conjunta, permitem a coadoção. Realce para o facto de a maioria dos países terem aprovado as leis relativas à adoção antes mesmo do casamento gay, indiciando a natureza distinta destas matérias.

6. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)

6.1. Caso Salgueiro da Silva Mouta vs. Portugal

30O caso chegou ao TEDH, como recurso de decisão proferida pela Relação de Lisboa no acórdão de 9/01/96, que negava a guarda da criança ao pai com base na homossexualidade deste, ignorando a relação de maior proximidade entre o pai e a filha e a idoneidade do mesmo para tomar conta desta. A justificação assentou no argumento de que “a menor deve viver no seio de uma família [...] tradicional portuguesa que não a do seu pai, uma vez que este vive com outro homem, como se de marido e mulher se tratasse. [...] estamos perante uma anormalidade e uma criança não deve crescer à sombra de situações anormais; di-lo a própria natureza humana [...]”. O TEDH pronunciou-se sobre esta matéria, considerando, ao contrário do contestado pelo Governo português, que “a homossexualidade do requerente pesou de modo determinante na decisão final”, tendo o Tribunal feito uma “distinção ditada por considerações que têm a ver com a orientação sexual do requerente, distinção que não se poderá tolerar segundo a convenção”. Conclui por fim que houve uma violação do artigo 8.º conjugado com o artigo 14.º da CEDH, condenando o Estado Português ao pagamento de uma indemnização ao requerente.

6.2. Caso E.B. vs. França

31Em 2008 importa destacar o caso E.B. v. França. Aqui, E.B., uma professora de ensino primário com 45 anos de idade que vivia com uma psicóloga, R., desde 1990, procurou, em 1998, recorrer à adoção singular junto dos Serviços de Segurança Social, informando-os da sua orientação sexual e da sua relação com R. De imediato, a sua candidatura foi rejeitada pelos serviços de adoção, decisão esta posteriormente confirmada pelo Conselho Nacional de Ética Francês, com base no argumento de que “a falta de um modelo de identificação do sexo masculino implicaria que a referida adoção não seria no interesse da criança”. Após recurso para o TEDH, este considerou que a decisão francesa era violadora dos artigo 14.º e 8.º da CEDH, concluindo que “excluir a possibilidade de uma criança ser adotada com base na orientação sexual dos adotantes é um motivo ilegítimo e contra os direitos humanos, e contra o próprio interesse da criança.” Adiantou, ainda, que preconceitos nunca devem “interferir com a possibilidade de uma criança receber os cuidados e o amor que merece”. O Tribunal também veio a rejeitar expressamente os argumentos invocados pelo Governo francês de que não haveria consenso europeu no que diz respeito à adoção gay e de que a comunidade científica ainda se encontrava dividida relativamente às consequências da adoção homossexual para a criança, entendendo que nenhum Estado teria legitimidade para impedir a adoção de uma criança com base, apenas e exclusivamente, na orientação sexual do(s) requerente(s).

6.3. Caso Gas e Dubois vs. França20

  • 20 Ver Sokol (2012).

32Este caso, decidido a 15 de Março de 2012, diz respeito a um casal lésbico que, após mais de 20 anos de vida em conjunto, teve uma filha através do recurso a técnicas de PMA. A mãe não biológica requereu, com o consentimento da sua companheira, junto dos Tribunais franceses a adoção singular da filha biológica. Tal pretensão foi rejeitada. O casal recorreu para o TEDH, considerando que a decisão francesa atentava contra a reserva da intimidade da vida privada e que se traduziria numa decisão com resultado discriminatório em função da orientação sexual. Efetivamente, de acordo com a lei francesa, a adoção singular a favor de Valérie Gas teria como resultado a perda dos laços jurídicos com a mãe biológica. Para o casal, a extinção de vínculos jurídicos com a mãe biológica, em consequência da concessão da adoção singular, seria discriminatória, uma vez que um casal heterossexual poderia evitar tal consequência através do casamento, uma opção legalmente vedada em França para os casais homossexuais. O artigo 365.º do CC Francês prevê que uma adoção singular implique a transferência dos direitos sobre a criança do progenitor biológico para o adotante, excetuando as situações em que tal adotante seja cônjuge do progenitor. Uma vez que em França o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo não era à data reconhecido, estes casais nunca estariam abrangidos por aquela norma.

33Ao contrário do que seria expectável, e ainda que se tenha reconhecido que os dois membros do casal tinham estado conjuntamente envolvidos nos cuidados da criança, o TEDH decidiu que não houve qualquer violação do artigo 14.º da CEDH porquanto, para tal acontecer, seria necessário haver um tratamento diferente entre pessoas em situação comparável e, neste caso, um casal heterossexual a viver em união de facto em França encontrar-se-ia na mesma situação que o casal Gas e Dubois. Fica claro que esta decisão foi claramente prejudicial aos superiores interesses da criança envolvida, transmitindo à criança e à comunidade a errada e perigosa mensagem de que os laços afetivos que a mesma mantém com as suas mães não são dignos de tutela legal, prevalecendo sobre estes uma lei desprovida de conteúdo e de aproximação à realidade. É claro que seria do total interesse da criança ver os vínculos com as duas pessoas que sempre de si cuidaram serem legalmente reconhecidos e beneficiarem da proteção necessária à sua consolidação e desenvolvimento, ainda que se consiga perceber, de um ponto de vista jurídico-formal, a inexistência de uma discriminação propriamente dita.

6.4. Caso X e outros vs. Áustria21

  • 21 Consultado a 25.01.2014, em //ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/TEDHXandothersVAustria190213.pdf(...)
  • 22 Consultado a 25.01.2014, em //ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/cartaCEDH.pdf.

34Este caso diz respeito a um casal lésbico que vive em conjunto com um filho de um dos membros do casal, sendo que ambas as mulheres assumem as funções parentais na totalidade, tendo pretendido a mãe não biológica adotar o filho por forma a garantir a total proteção legal do mesmo. Os tribunais austríacos rejeitaram tal pedido, rejeitando o facto de a criança poder ter duas mães quando o pai biológico, ainda que sem qualquer contacto com o filho, era vivo. Neste processo, decidido em fevereiro de 2013, o TEDH condenou o governo austríaco por não ter conseguido argumentar que seria no interesse da defesa de valores familiares ou do bem-estar da criança o impedimento da adoção num casal do mesmo sexo em que apenas a parentalidade de uma das pessoas estava reconhecida na lei. O segundo elemento do casal deverá assim poder adotar também a criança em causa, sob pena de violação da CEDH, nomeadamente os artigos 8.º e 14.º. No texto da decisão, Portugal é citado, a par da Roménia, Rússia e Ucrânia, como os outros quatro países em que a referida violação acontece, uma vez que estes países preveem especificamente a possibilidade da coadoção por casais heterossexuais. Importante destacar que, ainda que não tenha força diretamente vinculativa para Portugal, o artigo 46.º da CEDH determina que os Estados-membros do Conselho da Europa devem seguir as decisões do TEDH, implementando-as legislativa e judicialmente, de onde se retira, através da res interpretata do dito Tribunal, uma interpretação autoritativa da Convenção, com efeitos erga omnes. Ainda nesta senda, e no âmbito do processo legislativo nacional relativo à matéria da coadoção, o Comissário Europeu dos Direitos Humanos remeteu uma missiva ao Parlamento Português onde destacou a necessidade de colocar a legislação portuguesa em conformidade com a jurisprudência do TEDH, permitindo que casais do mesmo sexo tenham acesso às mesmas oportunidades de serem considerados pais ou mães adotantes de uma criança de acordo com o princípio do superior interesse da criança.22

7. Conclusão

35Uma posição neutra relativamente à parentalidade adotiva por casais homossexuais só pode existir se conseguirmos abstrair-nos dos dogmas e das crenças sociais e entendermos objetivamente o superior interesse da criança.

36É um pressuposto consensual deste debate aceitar que qualquer pessoa, independentemente da sua orientação sexual, pode desenvolver em si a capacidade de amar, cuidar e assumir as responsabilidades por uma criança. A família não deverá ser encarada como um mero instituto legal ou um contrato social. Antes disso, a base da mesma devem ser os afetos e o respeito, bem como os laços de cuidado que unem os seus membros entre si. É o próprio princípio da dignidade humana que pugna pela proteção da família nestes termos, retirando-lhe uma tipicidade desnecessária e permitindo a sua conformação e adaptação às diversas realidades afetivo-sociais, independentemente do vínculo biológico.

37As constantes interrogações e suspeitas relativas às capacidades dos casais homossexuais não irão desaparecer a curto prazo, apesar de infundadas. No entanto, o tempo despendido em discussões paralelas faz a sociedade esquecer-se da existência de inúmeras crianças que, de uma forma ou de outra, se encontram tão simplesmente à espera de uma família. Todas essas crianças merecem os cuidados, o carinho e, acima de tudo, o amor necessário ao seu crescimento, desenvolvimento, felicidade e realização pessoal. Amar e ser amado, sonhar, sentir-se importante e importar-se com o sentimento dos seus familiares são fatores fundamentais para o desenvolvimento da personalidade de uma criança. É do total interesse das crianças crescerem e serem criadas num ambiente que lhes garanta todos estes direitos. É função do Estado garantir a essa criança a sua inserção numa família capaz de lhe proporcionar este ambiente familiar saudável, afetuoso e responsável, ambiente esse que poderá surgir ou não, mas sempre independentemente da orientação sexual dos envolvidos e da diversidade ou identidade de género dos pais ou cuidadores. Casais homossexuais têm vindo a criar crianças, ao longo dos anos, sem qualquer tipo de influência negativa nas mesmas. Negar à criança a possibilidade de ter, perante a lei e a sociedade, o reconhecimento de ambos os seus pais ou mães e a proteção que lhe é inerente, é prejudicá-la, puni-la, e é, acima de tudo, ir contra o seu interesse.

38Não pugnamos por um direito absoluto a adotar. Entendemos, no entanto, que se retira da solução constitucional portuguesa a existência de um direito a constituir família, através da adoção, em condições de igualdade (artigo 36.º/1 e 13.º CRP). Defendemos que a lei 9/2010, enquanto lei restritiva deste direito, não encontra qualquer justificação legitimadora nem no interesse da criança nem em qualquer interesse público. É, assim, imperativo eliminar o obstáculo legal criado, que além de desadequado, se encontra ferido de inconstitucionalidade, sendo inclusive violador da CEDH.

39Estando nós perante um instituto como o da adoção, onde abundam critérios de oportunidade, discricionariedade e conceitos indeterminados, assim como onde as perceções e crenças sociais assumem um papel fundamental, sabemos que não será apenas com a previsão legal da adoção por casais homossexuais que esta realidade se efetivará. Permitindo-se aos casais homossexuais candidatarem-se à adoção, os mesmos poderão, ainda assim, ver o seu processo indeferido em virtude da homofobia e desinformação aliada à discricionariedade e discriminações conscientes dos vários organismos oficiais que intervêm em todo o processo. É mister formar profissionais capazes de conseguirem entender o interesse da criança em cada caso concreto, abstraindo-se de convicções pessoais e analisando as candidaturas de casais homossexuais com a mesma neutralidade, rigor e fundamento com que são analisadas as dos casais heterossexuais.

40Apesar de sabermos que não será uma mudança imediata, acreditamos que o Direito, como já o fez em vários momentos da História, virá ao de cima fazendo valer os princípios pelos quais se rege, garantido a efetivação da dignidade da pessoa humana e fazendo com que, lenta mas gradualmente, a mentalidade social acompanhe o novo paradigma jurídico. Eliminando-se o obstáculo legal, faremos com que a homofobia e a desconfiança para com os casais homossexuais deixem de estar legitimadas e previstas na lei, facilitando a sua aceitação social. O fundamental é pugnar para que, no futuro, não seja qualquer tipo de legislação rígida e desadequada a excluir a priori um grupo do exercício de direitos, mas sim um órgão competente, desprovido de mitos e preconceitos, a decidir quais os candidatos idóneos para adoção. A ponderação necessária deverá incidir tão-somente na capacidade de assumir responsabilidade por uma criança, não se podendo discriminar candidaturas pelo sexo, estado civil, situação económico-social, idade ou orientação sexual.

41A família, que tantas crianças procuram, não pode ser escolhida tendo por critério a orientação sexual dos adultos que a compõem. Excluir e negar à criança o ambiente e a família capaz de responder às suas necessidades de afeto com base em critérios dúbios, discriminatórios e sem validade científica é um erro e uma hipocrisia total num mundo que procura supostamente, e acima de tudo, proteger as suas crianças, os seus jovens, o tal superior interesse da criança.

É possível a adoção conjunta por casal homoafetivo?

Não há proibição acerca da adoção por casais do mesmo sexo, pois a faculdade de adotar é tanto do homem quanto da mulher e ambos em conjunto ou isoladamente, independentemente do estado civil. Não importando a orientação sexual do mesmo, devendo ter em vista sempre o bem-estar da criança e do adolescente.

Quais os principais desafios e entraves existentes em um processo de adoção por um casal homoafetivo?

Percebe-se diante do exposto que a principal dificuldade enfrentada pelos homoafetivos no processo de adoção é o preconceito, visto que este e embutido de discriminação, falta de respeito a orientação sexual alheia e pela violação de direitos fundamentais presente na constituição federal, Farinelli e Mendes (2008).

O que é adoção homoparental?

Entende-se por adoção homoparental aquela adoção requerida por duas pessoas do mesmo sexo que mantém relação homoafetiva. Ou seja, é adoção por casais homossexuais.

Quantas crianças são adotadas por casais LGBT?

Em dados gerais, 2,9% dos casais homoafetivos têm crianças adotadas enquanto entre casais heterossexuais esta taxa não passa de 0,4%. O pesquisador de saúde Shoshana Goldberg, principal autor do estudo, ressalta a importância de leis que protejam a adoção e promoção de adoção por casais do mesmo sexo.

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