Leandro Karnal, no sétimo capítulo do livro História da Cidadania (organizado por Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky; 6a. ed.; São Paulo; Contexto; 2013; 573 páginas), discute a Guerra da Independência dos Estados Unidos da América, suas implicações para uma nova concepção política e as transformações importantes nos conceitos de cidadania e liberdade.
Na verdade, não existe um conceito universal e atemporal de cidadania. Ela é uma construção histórica específica da Civilização Ocidental. Houve uma invenção específica, a cidadania e a liberdade nos Estados Unidos da América. Esses conceitos transformaram-se muito ao longo do tempo.
Na miríade de imigrantes que formaram as 13 colônias britânicas na América do Norte, para a constituição da imagem de liberdade e da cidadania, desde os primórdios, houve uma hipertrofia de alguns fatos históricos e a supressão ou diminuição de outros. Foi um “extra-ordinário” processo de (re)invenção de memória e de uma longa tradição de liberdade.
No discurso fundador, aquele punhado de ingleses – “pais peregrinos” [pilgrim fathers] no navio Mayflower – preocupam-se, desde logo, com leis que garantam justiça e igualdade. Parecia existir um cidadania avant la lettre, uma cidadania 150 anos antes da Independência e da Constituição.
Esses pioneiros forneceram outra base para o imaginário político-religioso dos séculos seguintes. No início do inverno de 1621, tendo sido devastados pela fome e frio do ano anterior, realizaram um Dia de Ação de Graças, que se consagraria como o grande feriado dos Estados Unidos juntamente com o Dia da Independência. “O peru paga o pato” até hoje…
Idealiza-se os colonos como religiosos laboriosos e consagra a visão de pacifismo com os índios, que os fatos históricos não comprovariam. No entanto, a invenção sobre o passado pintou o quadro ideal para fundar o imaginário político na constituição da nova Nação.
A ideia de autonomia e liberdade das colônias é muito mais complexa do que a memória oficial destacou. Em 1676, já houve a tentativa de um “general pelo consentimento do povo”, Nathaniel Bacon, opor um poder carismático e democrático a autoridades constituídas, inclusive ampliar o sistema de voto para incluir colonos brancos pobres.
O caráter “democrático” se turva diante do fato de que os rebeldes querem uma atitude mais agressiva em relação às terras indígenas. A política conciliatória do governador da Virgínia irritava os brancos sem terras, que veem as terras a Oeste como uma chance de ascensão social. Acusam-no de corrupto e de não defender os interesses reais.
A proposta dos colonos de rapinagem sobre as comunidades indígenas se choca com a imagem de democracia e cidadania. A liberdade de expansão dos colonos brancos existiu na proporção do ataque às comunidades indígenas. A leitura colonial da ideia de um cidadão livre não se tornava uma postura universal para o gênero humano.
A tradição de liberdade para os colonos puritanos foi reforçada ao longo de todo o século XVII pela quase ausência total da Inglaterra. Envolvidos nas suas disputas internas que levariam à decapitação de Carlos I, à República, à Restauração da Monarquia e à deposição de James II, em 1688, até pactuarem uma Monarquia Parlamentar, os ingleses pouca atenção deram às suas colônias. Atitude bem distinta da adotada pelos portugueses, que fiscalizaram de perto a extração de ouro em Minas Gerais, no século XVIII, e inclusive refugiaram o rei D. João VI e sua corte, aqui, na colônia sul-americana, durante a Guerra Napoleônica.
A partir da metade do século XVIII, houve, entretanto, uma visível mudança no comportamento colonial inglês. As dívidas contraídas pelo governo de Londres durante a chamada Guerra dos Sete Anos com a França (1756-1763) e as novas necessidades ditadas pela Revolução Industrial justificaram a alteração de atitude com a imposição de legislação de caráter mercantilista, reduzindo a liberdade colonial que predominara antes. Os colonos norte-americanos passaram a receber, sistematicamente, leis restritivas com a do açúcar, a do selo, a da moeda, etc.
As medidas britânicas provocaram o choque entre a Inglaterra e suas 13 colônias. Os colonos passaram a fazer petições com reclamações e congressos expressando sua desavenças com a nova política. A política inglesa foi pouco flexível e a repressão armada começou. Ainda antes da Declaração de Independência de 1776 já existiam choques armados entre colonos e ingleses.
Não havia apenas uma luta para enfrentar, havia uma memória e uma identidade a construir. A rebelião de Nathaniel Bacon não era, exatamente, um bom modelo por suas ambiguidades. O tipo ideal só poderia ser encontrado nos puritanos, fugindo da perseguição religiosa e que tinham assinado um documento de liberdade com o qual o evento de 1776 poderia fazer uma ligação extraordinária: o Mayflower Compact. Assim, a vontade de liberdade expressa nesse curto documento fazia uma linha clara com a Declaração de Independência, síntese e objetivo criados no século XVIII, mas sonhado nos porões do Mayflower. Com certo cinismo histórico, nasce uma Nação puritana…