Como as concepções de infância Educação Infantil são vistas historicamente?

A vida das crianças é vivida através de infâncias construídas para elas, a partir das compreensões dos adultos sobre a infância e sobre o que as crianças são e devem ser. (MAYAL, In: DALHBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 63).

A Sociologia da Infância emerge como campo de estudos que questiona a concepção clássica de socialização (segundo a qual a criança é compreendida apenas como objeto do processo), e propõe a percepção da infância como construção social, componente estrutural da sociedade, apontando a criança como ator e sujeito produtor de cultura. A multiplicidade de recortes investigativos na área – apontados por Sirota (2001), que analisa sobretudo a produção em língua francesa, e Montandon (2001), examinando textos em língua inglesa – não é empecilho à configuração e à emergência de pontos em comum que permitem a delimitação de um campo de estudos específico, que vem ganhando destaque nas últimas décadas, inclusive no Brasil. Trata-se de um processo que se dá não apenas do ponto de vista científico – derivado de um movimento geral da sociologia que se volta para o ator –, mas que tem desdobramentos no plano social e político, manifestado no debate em torno dos direitos da criança iniciado a partir especialmente da década de oitenta (SIROTA, 2001).

À luz da crescente disseminação de concepções oriundas desse campo, propusemo-nos, neste artigo, a responder à seguinte questão: “Quais as contribuições do paradigma da Sociologia da Infância para a elaboração de um projeto político-pedagógico para a Educação Infantil?”. A reflexão foi construída com base em pesquisa bibliográfica, e o presente artigo foi organizado em três seções: na primeira, apresentamos alguns conceitos e concepções do campo da Sociologia da Infância; a seguir, trazemos a discussão sobre o projeto político-pedagógico da Educação Infantil, procurando analisar possíveis contribuições e implicações dos aportes da Sociologia da Infância; por último, tecemos algumas considerações finais.

Sociologia da infância: delineando alguns conceitos

A emergência da infância

De acordo com Ariès (2006), a construção do que ele denomina sentimento de infância1 relaciona-se à emergência da instituição escolar como espaço para a formação de crianças e jovens e à organização da família nuclear moderna nos meios burgueses, entre outros2. Até a Idade Média a infância parecia não ser reconhecida: a criança era representada na iconografia como um adulto em miniatura, e a própria denominação enfant (aquele que não fala) é indicadora de sua invisibilidade. A infância era uma fase sem importância, já que a própria sobrevivência das crianças era problemática, pairando um sentimento de que se faziam muitas crianças para se conservar apenas algumas.

A percepção das especificidades da criança e a emergência de um sentimento de infância podem ser observadas na especialização dos trajes, jogos e espaços a ela reservados, e sua diferenciação daqueles destinados aos adultos. O primeiro sentimento de infância emerge nos meios familiares com a percepção da criança como fonte de distração por sua ingenuidade – um sentimento nomeado por Ariès (2006) de paparicação. Posteriormente, entre moralistas e educadores do século XVII constitui-se um novo sentimento, relacionado à preocupação com a formação moral com o objetivo de preservar a inocência infantil da corrupção da vida e desenvolver o caráter e a razão: as crianças são vistas como anjos, reflexos da pureza divina, seres frágeis que demandam proteção e formação. É nesse contexto que se assiste à multiplicação das instituições educacionais, concomitante à transformação dos hábitos escolares em direção a uma disciplina mais rigorosa. Esse sentimento é incorporado à vida familiar e, no século XVIII, a preocupação com a higiene e a saúde física da criança soma-se aos dois elementos anteriores.

O desenvolvimento da instituição escolar também está vinculado a esse processo. Durante muito tempo a escola permaneceu indiferente à distinção das idades, pois seu objetivo essencial não era a educação da infância; a escola medieval não era destinada às crianças, e sim à instrução dos clérigos de diferentes faixas etárias, e somente a partir do século XV o colégio passou a se dedicar essencialmente à educação e à formação das novas gerações. O estabelecimento de regras de disciplina completou o processo de constituição do colégio moderno, instituição dedicada ao ensino, à vigilância e ao enquadramento da juventude. A mudança da instituição escolar relaciona-se, portanto, à transformação do sentimento das idades e da infância (ARIÈS, 2006).

Infância e família nuclear moderna também não podem ser pensadas como eventos isolados. Na Idade Média a ideia de linhagem era o único sentimento de caráter familiar conhecido; as crianças eram percebidas como propriedade da comunidade, sendo comum seu envio a outras famílias como aprendizes; a transmissão de conhecimentos era garantida através da participação na vida dos adultos, não havendo espaço para a escola. A emergência da família nuclear acompanha o processo de desenvolvimento do sentimento de infância: a família passa a organizar-se em torno da criança, e as antigas formas práticas de aprendizagem são substituídas pela frequência à instituição escolar.

Sem desconsiderar os aspectos problemáticos da obra de Philippe Ariès já evidenciados por autores e pesquisadores – dentre eles, a generalização de elementos particulares que dizem respeito à nobreza e à burguesia, já que a fonte de pesquisa foi prioritariamente a iconografia, forma de arte reservada à elite –, não podemos ignorar a contribuição de seu trabalho ao menos em dois aspectos: primeiro, por inaugurar um campo de estudos até então pouco explorado – a história da infância a partir da análise do cotidiano -; segundo, por dar início à concepção de infância enquanto construção social, como aponta Sirota (2001).

Sarmento (2007) faz referência à invisibilidade da infância como processo decorrente das concepções historicamente construídas sobre as crianças que ocultam a realidade de seus mundos sociais e culturais. Da (in)visibilidade histórica – já exposta quando falamos da produção de Ariès –, passamos pela (in)visibilidade cívica como consequência do afastamento do mundo da infância do mundo do adulto e da ideia de que as crianças estão privadas do exercício dos direitos políticos, sendo vistas como “cidadãos do futuro”. Sarmento contrapõe-se a essa perspectiva, entendendo que reconhecer o direito de cidadania não significa restringir a necessidade de proteção das crianças pelos adultos, mas implica o balanço entre proteção e participação de forma a garantir o atendimento às necessidades e aos interesses das crianças.

Em outra esfera, a (in)visibilidade científica é apontada como sustentação das (in)visibilidades histórica e cívica e se manifesta não pela ausência de investigação sobre as crianças, mas pelo tipo de produção de conhecimento que reforça a ideia de incompletude e imperfeição da criança. Sarmento (2007) aponta as teorias piagetianas – que se apóiam na existência de uma lógica linear, progressiva e padronizada do desenvolvimento – e o pensamento dominante da socialização – ao identificar a criança como objeto do processo – como expressões do ocultamento da infância e das crianças nas pesquisas. Soma-se ainda a (in)visibilidade estatística apontada por Sirota (2001), evidenciada pela escassez de indicadores numéricos sobre a vida das crianças na sociedade.

Diante desse quadro,

A sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como objeto sociológico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano, e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social das suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para elas. (SARMENTO, 2005, p. 363).

Propondo-se a conferir visibilidade à infância enquanto forma estrutural da sociedade e construção social, a Sociologia da Infância instaura uma nova maneira de conceber a criança em suas relações com a cultura e a sociedade.

Infância como fenômeno social

Um conceito importante para a compreensão da infância é o de geração, entendida como categoria estrutural (SARMENTO, 2005) que não elimina os efeitos de classe, gênero ou raça, mas se integra a eles. O conceito permite-nos distinguir as especificidades da infância em relação à idade adulta, e evidenciar sua permanência na sociedade, independentemente dos sujeitos que a compõem – as crianças crescem, mas a infância permanece na sociedade enquanto forma estrutural.

O conceito de geração implica ainda considerar a infância como grupo com estatuto social diferenciado; sendo uma construção histórica, caracteriza-se não apenas pela faixa etária à qual pertencem os indivíduos, mas substancialmente pelo modo como é interpretada pela sociedade. Trata-se então de um fenômeno social (QVORTRUP, 1993): existem, portanto, diferentes infâncias, contextualizadas em diversas sociedades e épocas – ser criança hoje, no Brasil, na classe popular, por exemplo, não é o mesmo que ser criança na Idade Média europeia, ou ser criança em uma comunidade indígena. No entanto, em que pesem os diversos modos como a infância é percebida pelos múltiplos grupos sociais, é preciso considerar que em todos os contextos existe a infância como categoria social3. Nessa perspectiva, a infância não é uma etapa passageira da vida, um vir-a-ser – concepção que reforça a ideia de incompletude da criança -; a infância é categoria com especificidades que a caracterizam. A criança, nesse contexto, já é uma pessoa, já é parte da sociedade.

Jenks (2002) também considera a infância como um construto social por corresponder a um estatuto definido socialmente. A infância, portanto, não é um fenômeno natural, não diz respeito simplesmente ao aspecto biológico e sim, acima de tudo, a um contexto cultural particular. Portanto, “as diferentes imagens e representações da criança são fruto dos diferentes mundos sociais e teóricos que habitamos” (JENKS, 2002, p. 214).

Qvortrup (1993), em suas nove teses sobre a infância como fenômeno social, permite-nos avançar nessa compreensão. As teses apresentadas são, a saber: 1ª, a infância é uma forma estrutural particular existente em toda sociedade e por ela definida (a infância não é definida em termos biológicos, mas pelas construções determinadas socialmente4); 2ª, a infância é uma categoria social permanente, e não uma fase de transição; 3ª, a ideia de criança é problemática por indicar uma concepção de indivíduo a-histórico, separado da sociedade; por outro lado, a infância é uma categoria variável histórica e intercultural – há muitas infâncias, portanto; 4ª, a infância é parte integrante da sociedade, interagindo com os outros setores que a compõem, e da divisão do trabalho, dedicando-se ao trabalho escolar; 5ª, as crianças são construtoras da infância e da sociedade, contribuem para sua constituição; 6ª, a infância é exposta às mesmas forças sociais que os adultos, embora de modo particular, e também vivencia os impactos sociais; 7ª, a invisibilidade da infância em descrições históricas e sociais, consequência das definições arraigadas das crianças como imaturas, sendo escassos os materiais que procuram compreender a infância do ponto de vista das crianças; 8º, a ideologia da família constitui uma barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças – a ideia de que as crianças são propriedade dos pais e exclusivamente responsabilidade deles dificulta a responsabilização da sociedade; 9ª, a infância é uma categoria minoritária e, como tal, exposta à marginalização e/ou ao paternalismo. Em última instância, busca-se construir uma nova concepção de infância que garanta às crianças seu direito à cidadania.

Para Qvortrup (1994), as construções sociais sobre a infância indicam que as crianças não são consideradas membros integrados à sociedade; a infância é entendida como uma fase preparatória, o que confirma a consideração da “natural” incapacidade das crianças. O autor questiona a ideia de que os adultos teriam o direito natural de exercer poder sobre as crianças, justificado pela existência de um status superior em função de uma diferença ontológica entre eles. Na verdade, se as crianças são tratadas de forma diferente pelos adultos isso se deve menos ao fato de não serem ativas, e mais por não serem ativas da forma como os adultos são, postura indicadora do não reconhecimento da práxis da criança, em um contexto no qual a noção de agência ou capacidade é definida em relação à prática do adulto.

Considerar a criança como pessoa implica, por outro lado, reconhecer a dependência em relação ao adulto como uma característica definidora da infância. Como parte da estrutura social, a infância está exposta a forças como os outros grupos, porém de maneira ainda mais devastadora pois a criança depende economicamente do adulto e é jovem demais para reclamar por políticas de proteção. Nesse sentido, Qvortrup (1994) alerta para a degradação das condições materiais de vida das crianças, apontando para a necessidade de criação de políticas de suporte à família que tenham como foco a infância. As crianças precisam, portanto, como cidadãs, ter direito a participação, provisão e proteção (QVORTRUP, 1994).

O autor argumenta que é possível e necessário considerar a infância unidade de análise no campo da sociologia, estudar as crianças por seu próprio mérito, adotando seu ponto de vista. Se a infância é parte da sociedade, é preciso que seja estudada como outros fenômenos sociais; se as crianças participam da vida social, é preciso reconhecer que sua participação acrescenta algo à sociedade, transformando-a.

Sobre as culturas infantis

De acordo com Corsaro (2002), as crianças contribuem para a reprodução da cultura adulta através da negociação e da produção. A criança é participante ativo da vida em sociedade, produtora, nas interações com os colegas, de culturas de pares por meio das quais vai se apropriando criativamente das informações do mundo adulto, interpretando-as e recriando-as. Não se trata, portanto, de uma assimilação, mas de um processo de “reprodução interpretativa” que possibilita a construção das culturas infantis e a compreensão da cultura mais ampla.

Na perspectiva da reprodução interpretativa o foco é a participação das crianças na produção e reprodução cultural mais do que no processo de internalização, pela criança, de habilidades e conhecimentos dos adultos. O aspecto central é a participação das crianças em rotinas culturais, produzidas coletivamente, através das quais se tornam membros da cultura de pares e do mundo adulto. As atividades entre as crianças e a produção de culturas de pares é, pois, tão importante quanto a interação com os adultos (CORSARO, 1997).

Por culturas da infância entendemos “a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de significação” (SARMENTO, 2003, p. 3-4). Caracterizam-se pelo processo de reprodução interpretativa, pelo jogo simbólico e alteração da lógica formal, pela interatividade – são necessariamente culturas de pares (id.) O conceito de culturas da infância permite-nos compreender as crianças como sujeitos ativos que interpretam o mundo e agem sobre ele.

O brincar pode ser considerado espaço/ tempo privilegiado para a construção das culturas de pares; é por meio dele que as crianças se envolvem em um processo de reprodução interpretativa das experiências de suas vidas reais (CORSARO, 2002) na qual o imaginário apresenta-se como forma privilegiada de relação da criança com o mundo.

Considerar a criança produtora de cultura implica uma radical mudança de paradigma: de uma criança incapaz e indefesa passamos a uma imagem de criança ativa e social, com inúmeras formas de linguagem e que, por meio da interação com seus pares, os adultos e o mundo, vivencia um processo de descoberta, de apropriação, de interpretação e de transformação do real.

A consideração da criança como sujeito, ator social, não deve ser confundida com adultização da infância: o reconhecimento da capacidade de agência da criança implica a percepção da existência de distintas modalidades de agência, identificando as especificidades da infância (CARVALHO; NUNES, 2007). A Sociologia da Infância, ao desconstruir concepções estereotipadas acerca da infância e da criança, permite-nos visualizar uma criança partícipe, sujeito e não apenas objeto da educação.

A sociologia da infância e a construção de um projeto político-pedagógico para a educação infantil

As crianças são sujeitos sociais. A escola é um lugar de cultura, não somente onde se traduz a cultura, mas também onde se elabora a cultura da criança, a cultura da infância e a cultura da creche. (RINALDI, 2002).

A Educação Infantil no Brasil tem alcançado visibilidade e, apesar dos grandes desafios a serem enfrentados, avançou em termos legais, sendo considerada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/97) primeira etapa da Educação Básica. As crianças foram reconhecidas como sujeito de direitos, garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), e também na Constituição Federal de 1988. Encontramos, porém, grande distância entre o que dizem as leis e o que de fato ocorre na prática; temos ainda longo percurso a trilhar no sentido de: 1. garantir creches e pré-escolas a todas as crianças; 2. garantir creches e pré-escolas de boa qualidade – palavra controvertida, mas que empregamos neste momento no sentido de reforçar a importância não apenas da ampliação do acesso mas também da construção de propostas, espaços, interações, situações que possibilitem às crianças a construção de significados, a experimentação, a utilização de múltiplas linguagens, a aprendizagem, a produção cultural.

Fazer referência ao trabalho pedagógico da Educação Infantil indica a necessidade de delimitar uma concepção de educação e de um currículo para essa etapa da educação básica; evidencia que o fazer cotidiano em creches e pré-escolas caracteriza-se pelo seu viés pedagógico, e não assistencialista, compensatório ou preparatório. O trabalho realizado nas instituições de Educação Infantil é/ deve ser pedagógico no sentido de realizar-se de maneira intencional, planejada, e de visar a certos objetivos. Essa intencionalidade pauta-se em uma compreensão sobre a função social da educação escolar que, de acordo com os aportes da pedagogia crítica – dentre os quais destaco Saviani (1985) – deve concretizar-se na democratização do saber, do conhecimento, da cultura enquanto produção humana.

Pensar a função social da escola de Educação Infantil implica ir além, considerando as características do aluno dessa instituição: a criança. Portanto, o trabalho pedagógico da Educação Infantil pauta-se em uma concepção de infância, elemento imprescindível ao pensarmos em uma proposta pedagógica. É tarefa da escola democratizar o conhecimento, mas isto não pode ser feito de qualquer maneira, desconsiderando as especificidades da criança e seu modo próprio de ser e estar no mundo, de relacionar-se, e de aprender. E é nesse sentido que as contribuições da Sociologia da Infância podem se fazer presentes.

Sarmento (2007) destaca o poder das imagens sociais das crianças na regulação de seus mundos de vida, na determinação de pontos de referência para a interpretação de suas realidades e na padronização das relações entre crianças e adultos. Diferentes representações da infância construídas historicamente caracterizam-se essencialmente pelos traços de negatividade, considerando a infância como a idade do não: o não-adulto, a não-razão, o não-trabalho, a não-fala. Tais representações pautam-se no olhar adultocêntrico e reforçam as faltas, as ausências, a incompletude, como se a criança ainda não fosse uma pessoa. Sarmento (2007) conclui propondo uma nova compreensão:

Com efeito, a infância deve sua diferença não à ausência de características (presumidamente) próprias do ser humano adulto, mas à presença de outras características distintas que permitem que, para além de todas as distinções operadas pelo fato de pertencerem a diferentes classes sociais, ao gênero masculino ou feminino, a seja qual for o espaço geográfico onde residem, à cultura de origem e etnia, todas as crianças do mundo tenham algo em comum. (SARMENTO, 2007, p. 35).

Sabemos que as representações, constituídas a partir da interação entre teoria e prática, vivido e concebido (LEFÉBVRE, 1983), influenciam as ações dos sujeitos, produzindo estruturas de compreensão do real e de atuação sobre ele. Nesse sentido, as concepções de criança em desenvolvimento, criança em déficit ou criança marginalizada produziram e produzem modos de lidar com a criança, refletidos em práticas presentes no cotidiano das instituições de Educação Infantil. Nos anos 70, por exemplo, a abordagem da privação cultural, ao romper com a explicação biológica, acabou por instaurar um determinismo social que levou à responsabilização dos educandos pelo fracasso na escola. Nesse contexto, a pré-escola passou a ser considerada solução para o problema, em um viés compensatório e preparatório para a escolaridade obrigatória (KRAMER, 1996).

Parece que avançamos em relação a essa concepção de infância. As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) apontam para uma compreensão de criança que se aproxima à produção teórica do campo da Sociologia da Infância, ao considerá-la “sujeito histórico e de direitos” que produz cultura (artigo 2.2). De acordo com o documento, as propostas pedagógicas da Educação Infantil devem respeitar princípios éticos (autonomia, responsabilidade, solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades), políticos (direitos de cidadania, exercício da criticidade e respeito à ordem democrática) e estéticos (sensibilidade, criatividade, ludicidade e liberdade de expressão) (artigo 4). Como eixos orientadores do currículo são apontadas as interações, a brincadeira e a articulação de experiências que promovam o acesso à produção cultural mais ampla e, simultaneamente, a expressão e a produção de cultura pela criança, em um processo no qual educar e cuidar se fazem presentes de maneira articulada (artigo 11).

É preciso ampliar a discussão sobre o projeto pedagógico para a Educação Infantil partindo do aparente paradoxo entre institucionalização da infância – que implica intervenção visando, entre outros, à socialização do conhecimento e à formação segundo determinados ideais – e produção de cultura pela criança (CORSARO, 2002; SARMENTO, 2003) – que demanda a existência de tempos/ espaços para o brincar e a interação entre pares. Seriam aspectos contraditórios?

A Sociologia da Infância contribui para o desvelamento de concepções subjacentes a discursos e práticas pedagógicas, indicando-nos uma criança agente e produtora de cultura, de uma cultura que lhe é própria, mas que se relaciona com a cultura mais ampla em um processo de reinterpretação e reconstrução (CORSARO, 2011). Não se trata, portanto, de desconsiderar o papel do educador e da escola na infância, mas de reconfigurar o fazer cotidiano nesses espaços de modo a possibilitar a construção de um currículo pautado no respeito à criança como protagonista em seu processo de aprendizagem, desenvolvimento e vivência de sua infância. Isso implica valorizar suas falas, interesse, necessidades e produções, e possibilitar o acesso a experiências diversificadas de aprendizagem, tratando-as como pessoas que são. Faz-se necessário construir espaços, tempos, situações, relações que permitam à criança o acesso à cultura através de sua apropriação crítica e considerem o papel da criança na produção e transformação dessa mesma cultura que procuramos socializar. Desse modo, a institucionalização pode ser construída com base em uma pedagogia da participação (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007), e as concepções de infância e de criança oriundas da Sociologia da Infância mostram-se muito proveitosas nesse sentido.

O projeto político-pedagógico (PPP), entendido como “a própria organização do trabalho pedagógico da escola como um todo” (VEIGA, 2000, p. 11), configura-se como processo de reflexão e de tomada de decisão sobre a intencionalidade educativa que se pretende imprimir às ações cotidianas. O projeto implica um posicionamento que é político no sentido de implicar escolhas entre concepções distintas, que indicarão caminhos também diferentes a serem concretizados nas práticas cotidianas. Em síntese, o PPP expressa a intencionalidade educativa da instituição.

À luz dos aportes da Sociologia da Infância elucidados na seção anterior, podemos sistematizar elementos a serem contemplados em um projeto político-pedagógico para a Educação Infantil:

– Conferir visibilidade à criança (SARMENTO, 2005) e a seus modos próprios de expressão (fala, desenho, ação), reconhecendo seus modos próprios de ser e estar no mundo (QVORTRUP, 1994), o que implica acolhimento, escuta sensível e abertura à participação.

– Considerar da criança como pessoa histórica e socialmente situada, reconhecendo que as crianças vivenciam sua(s) infância(s) de diferentes maneiras, a depender dos contextos nos quais se inserem (QVORTRUP, 1993); trata-se de considerar a criança contextualizada, real, inserida na sociedade.

– Reconhecer a criança como sujeito, produtora de cultura, e a importância da interação, da imaginação e da brincadeira nesse processo (CORSARO, 2002; SARMENTO, 2003), o que implica garantir tempos e espaços nos quais esses elementos se façam presentes. É necessário garantir condições para a construção e reconstrução da cultura de pares, possibilitando às crianças momentos de brincadeira, participação e escolha, o que se reflete na organização dos espaços e dos tempos; uma rotina altamente estruturada pelo adulto, à luz de suas necessidades e não de necessidades e tempos da criança, não favorece a construção da autonomia, do engajamento coletivo e da participação.

– Reconhecer a criança como produtora de cultura, que se apropria do mundo à sua volta a partir de um processo de reprodução interpretativa (CORSARO, 2002) implica construir ambientes que potencializem o acesso a elementos da cultura mais ampla, ampliando as possibilidades de aprendizagem. Implica, também, valorizar as formas próprias de expressão da criança, reconhecendo-a como produtora de registros (LOPES, 2009).

– Considerar a capacidade de agência da criança não significa desprezar a necessidade de garantir proteção e provisão, além de participação (QVORTRUP, 1994); construir ambientes que garantam bem-estar físico e emocional à criança mostra-se essencial.

Nesse sentido, do ponto de vista organizacional, podemos elucidar algumas possibilidades. Com vistas a construir rotinas nas quais haja espaço ao exercício da autonomia e da escolha por parte da criança, e espaços que potencializem a interação, a brincadeira e a ampliação das experiências de aprendizagem, podemos propor a organização do espaço em cantos de atividades, que vão se modificando e incorporando elementos sugeridos pelo professor e mesmo pelas crianças. Envolver as crianças em processos de pesquisa, mobilizadas por questões que emergem do seu cotidiano também se mostra coerente com uma imagem de criança ativa e partícipe. Propor diferentes formas de expressão – potencializadas por rodas de conversa, incentivo ao desenho e à escrita espontânea, à dança, à produção de colagens e pinturas, dentre outros – também se mostra coerente com as concepções explicitadas, o que implica superar práticas como “pintar o desenho pronto”, ou realizar treino de habilidades motoras via atividades de repetição mecânica sem significado. Promover a ampliação das experiências de aprendizagem das crianças mediante o diálogo entre as culturas infantis e a cultura mais ampla também nos parece pertinente, fazendo-se necessário que as práticas pedagógicas se construam em uma lógica de participação, em diálogo com as culturas infantis. Nesse sentido, um projeto pedagógico construído à luz do referencial da Sociologia da Infância implica conferir especial atenção aos tempos, aos espaços e às interações e, em especial, à criança e à infância: “Coloca-se assim para os profissionais da educação infantil a importância da construção de propostas pedagógicas capazes de garantir à criança múltiplas oportunidades de experimentação, interação e aprendizagens, o que implica repensar tempos, espaços e agrupamentos” (MARQUES, GOMES, 2015, p. 63).

Faz-se necessário buscar o equilíbrio necessário entre cuidado e educação, atentando para que a instituição de Educação Infantil não seja apenas local de guarda das crianças, mas que também não se transforme em antessala do Ensino Fundamental; isso não significa ignorar o trabalho com o conhecimento, mas fazê-lo de modo a considerar a criança como protagonista ativo, sujeito; significa, sobretudo, não reduzir a experiência da criança à aprendizagem mecânica e ao treino de habilidades.

Nesse processo, é preciso considerar que as crianças necessitam envolver-se com diferentes linguagens e valorizar o lúdico, as brincadeiras, as culturas infantis. Não se trata assim de transmitir à criança uma cultura considerada pronta, mas de oferecer condições para ela se apropriar de determinadas aprendizagens que lhe promovem o desenvolvimento de formas de agir, sentir e pensar que são marcantes em um momento histórico (OLIVEIRA, 2010, p. 5).

Em última instância, trata-se de construir propostas pedagógicas que integrem cuidar e educar, proteção e participação, e que potencializem diferentes formas de expressão, interação e acesso ao conhecimento, o que certamente demanda repensar as condições de trabalho docente (número de crianças por sala, reorganização de rotinas e espaços na instituição, garantia de tempo para planejamento, pesquisa e documentação, dentre outros) com vistas a viabilizar a proposta.

Considerações finais

À luz do exposto, consideramos que os aportes teóricos da Sociologia da Infância trazem contribuições importantes ao processo de construção de propostas pedagógicas para a Educação Infantil que de fato considerem as crianças enquanto pessoas, que possibilitem a participação, a expressão, as múltiplas experiências, o exercício da autonomia, o acesso ao conhecimento e à cultura mais ampla, bem como o cuidado e a proteção necessários. O olhar “sociológico” pode ajudar-nos, enquanto educadores e pesquisadores, a perceber a criança em sua relação com as transformações por que passa a sociedade contemporânea, permitindo-nos compreender que também a infância está em constante mudança, e que a criança, ao mesmo tempo em que traz as marcas do contexto, também contribui para sua renovação. Em suma, permite-nos considerar a criança como ser histórico, cultural e social, em contraposição à concepção de uma infância única, atemporal, imutável e idealizada, e compreender a criança como pessoa que produz cultura, e que tem direito a participação, provisão e proteção.

Referências

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

BRASIL. MEC. SEB. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010.

CORSARO, W. A Reprodução Interpretativa no brincar ao ‘faz-de-conta’ das crianças. Educação, Sociedade e Culturas, Porto, n. 17, p. 113-134, 2002.

______. Children’s Peer Cultures and Interpretative Reprodution. In: The Sociology of Childhood. Thousand Oaks, Califórnia: Pine Forge Press, 1997.

______. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Qualidade na Educação da Primeira Infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003.

JENKS, C. Constituindo a Criança. Educação, Sociedade e Culturas. Porto, n. 17, p. 185-216, 2002.

KRAMER, S. Pesquisando infância e educação: um encontro com Walter Benjamin. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. (orgs). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas, SP: Papirus, 1996.

LEFÉBVRE, H. La presencia y la ausência – contribuición a la teoría de las representaciones. Madrid: Fondo de Cultura Economica, 1983.

LOPES, A. C. T. Educação Infantil e registro de práticas. São Paulo: Cortez, 2009.

MARQUES, A. C. T. L.; GOMES, M. de O. Educação infantil: tempos de vivência de direitos e da infancia. In: PIMENTA, S. G.; PINTO, U. de A. (Orgs). O papel da escola pública no Brasil contemporâneo. 1ª ed. São Paulo: Loyola, 2013. 158 p.

MONTANDON, C. Sociologia da Infância: balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa, Campinas/ SP, n. 112, p. 33-60, março/ 2001.

OLIVEIRA, Z. de M. R. O currículo na educação infantil: o que propõem as novas diretrizes nacionais? In: Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – Perspectivas Atuais. Belo Horizonte, 2010.

OLIVEIRA-FORMOSINHO, J. Pedagogia(s) da Infância: reconstruindo uma práxis de participação. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; KISHIMOTO, T. M.; PINAZZA, M. A. (Orgs.). Pedagogias(s) da infância: dialogando com o passado, construindo o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007.

QVORTRUP, J. Nove teses sobre a infância como um fenômeno social. Eurosocial Report, n. 47, p. 11-18, 1993. (tradução de Maria Letícia Nascimento). Mimeo.

______. Childhood Matters: An Introduction. In: QVORTRUP, J. et. al. Childhood Mattters - Social Theory, Practices and Politics. Aldershot: Avebury, 1994.

RINALDI, C. Reggio Emilia: a imagem da criança e o ambiente em que ela vive como princípio fundamental. In: GANDINI, L.; EDWARDS, C. (org.). Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SARMENTO, M. J. Gerações e Alteridade: Interrogações a partir da Sociologia da Infância. Educação e Sociedade, n. 26 (91), p. 361-378, 2005.

______. Imaginário e Culturas da Infância. Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho. Portugal, 2003. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2007.

______. Visibilidade social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS, V. M. R. de; SARMENTO, M. J. Infância (in)visível. Araraquara: Junqueira & Marin, 2007.

SAVIANI, D. Escola e Democracia. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 1985.

SIROTA, R. Emergência de uma Sociologia da Infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa. Campinas/ SP, n. 112, p. 7 – 31, março/ 2001.

VEIGA, I. P. A. Projeto político-pedagógico da escola: uma construção coletiva. In: ______. (Org). Projeto Político-Pedagógico da escola: uma construção possível. Campinas: Papirus, 2000.

Notas

1 Ariès denomina “sentimento de infância” a percepção da criança e da infância em suas especificidades, e sua consequente diferenciação da fase adulta e do adulto.

2 Em sua obra, Ariès (2006) elucida o processo de construção de concepções acerca da infância e da criança, fenômeno relacionado à transformação no papel da escola, à mudança de costumes e sua relação com o movimento moralista do século XVII, à transformação na concepção de família. Não é possível nem adequado reduzir-se o fenômeno complexo de transformação de mentalidades a um elemento em detrimento de outros, ou percebê-lo como um processo linear, e não dialético.

3 Sarmento (2005, p. 371) refere-se à distinção semântica e conceitual entre infância, entendida como categoria social do tipo geracional, e criança, referência ao sujeito concreto que integra a categoria infância e é concebido como ator social.

4 O autor considera duas características definidoras da infância na sociedade moderna: 1ª, a escolarização das crianças, ou seja, sua institucionalização; 2ª, em termos legais, o lugar das crianças como menores. Vemos que não é a idade nem as características particulares das crianças que definem a infância, mas seu aspecto social.

Autor notes

Rua Passos, 283, apto 51 A. CEP: 03058-010. São Paulo, São Paulo, Brasil

Como as concepções de infância e Educação Infantil são vistas historicamente?

As concepções sobre criança e infância são construções sociais, históricas e culturais que se consolidam nos diferentes contextos nos quais são produzidas e a partir de múltiplas variáveis como etnia, classe social, gênero e condições socioeconômicas das quais as crianças fazem parte.

Qual a concepção de infância ao longo da história da educação?

É no decorrer do século XVII que se da os primeiros passos para a separação do adulto e da criança, por meio da escolarização. Antes, por não haver a distinção entre idades, todos aprendiam da mesma maneira e sobre as mesmas temáticas. No fim deste século que pode-se notar as primeiras mudanças do conceito de infância.

Como era vista as instituições de Educação Infantil historicamente?

As instituições destinadas ao cuidado da criança eram de cunho preventivo e de recuperação das crianças pobres, consideradas perigosas para a sociedade. O foco não era a criança, mas naquilo que era denominado como menor abandonado e delinquente.

Qual é a concepção de infância na Educação Infantil?

infância. Segundo ela, a história da infância seria compreendida como “a história da relação da sociedade, da cultura, dos adultos com essa classe de idade e a história da criança seria a história da relação das crianças entre si e com os adultos, com a cultura e a sociedade” (p.