Se eu fosse eu mesmo

Por Ana Carolina Teixeira Pinto 1
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

eu toda a minha vida pensei por mim,
forro, sou nascido diferente.
Eu sou � eu mesmo.
Diverjo de todo o mundo.
Guimar�es Rosa

Se eu fosse eu mesmo

Em As palavras e as coisas, Michael Foucault destaca como fun��o pr�pria do saber, n�o apenas ver e demonstrar como tamb�m interpretar. O que aqui se pretende � conhecer o conto "Se eu seria personagem", de Guimar�es Rosa, e para tanto interpret�-lo, j� que, conhecer, para Foucault, � interpretar, ou ainda, "ir da marca vis�vel ao que se diz atrav�s dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas" 2 . Interpretar, aqui ser�, pois, expor uma de suas poss�veis leituras, que se mostra pertinente.

O corte inicial � feito na leitura do primeiro par�grafo do conto, onde o t�pico narrador rosiano exp�e sua caracter�stica de pensador de sua condi��o humana:

Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou an�nimo; o mais fundo de meus pensamentos n�o entende minhas palavras: s� sabemos de n�s mesmos com muita confus�o 3 .

Ao designar-se an�nimo de si mesmo e destacar uma confus�o do eu, o narrador torna poss�vel uma reflex�o sobre a pluralidade do eu. O que � observado no decorrer da narrativa � um movimento voltado para uma auto-leitura. E � a�, que o eu narrador se faz personagem por ele mesmo, quando este � leitor de si mesmo. Um leitor que tem que interpretar suas pr�prias palavras, j� que estas n�o correspondem a seus pensamentos. O eu narrador aqui admite seu anonimato ao mesmo tempo em que admite o emaranhado de fios que o comp�e.

Para melhor entender essa confus�o do eu confessada pelo narrador, onde os pensamentos n�o entendem as palavras 4 , cita-se o pensamento de Condillac exposto por Foucault, "Se o esp�rito [pensamento] tivesse poder de pronunciar as id�ias 'como as percebe', n�o h� d�vida de que 'as pronunciaria todas ao mesmo tempo'" 5 . � um emaranhado de id�ias que formam o eu. Um eu que n�o conhece suas palavras, sempre an�nimo a si mesmo, que nunca � um eu e sim, uns eus. Bakhtin fala de um di�logo constante presente na exist�ncia do eu, em suas palavras: "Eu n�o posso passar sem o outro, n�o posso me tornar eu mesmo sem o outro" 6 . O outro de Bakhtin em sua teoria dial�gica pode ser relacionado ao tu de Benveniste, que � reciprocamente constitutivo do eu. E � dessa rela��o que surge o ele como n�o-pessoa, formando, assim, a tr�ade. � interessante notar que o conto trata tamb�m de uma tr�ade, o narrador, Titol�vio S�rvulo e Orlanda.

Se eu fosse eu mesmo

Dessa tr�ade, ressalta-se agora o personagem Titol�vio. Este � apresentado pelo narrador como o amigo ideal: "Titol�vio S�rvulo, esse, devia ser meu amigo. Ativo, atilado em a��es, n�scio nos atos; r�u de grandes dotes faladores" 7 . Suas caracter�sticas apontam para um ser precipitado, ing�nuo e falador, o oposto da auto-descri��o do narrador: "Sou t�mido. Vejo, sinto, penso, n�o minto. Me fecho" 8 . Um ser cuidadoso, meticuloso e introspectivo. Titol�vio pode, portanto, ser o outro do narrador an�nimo, seu duplo. O interlocutor perfeito, o oposto como pe�a fundamental do di�logo. Bakhtin aponta o di�logo como �nica possibilidade do ser, em suas palavras: "Ser significa comunicar-se pelo di�logo" 9 . Ser, portanto, � plural, ou como diz o narrador do conto: "Viver � plural".

Benveniste destaca o tu como interlocutor do eu e fator essencial para sua constitui��o. Tamb�m chama o tu uma quase-pessoa, ativadora do di�logo, e acrescenta a qualidade de objetividade ao tu contrapondo-se � subjetividade do eu 10 . Pode-se, portanto, percebendo a oposi��o dos dois personagens tom�-los como di�logo, ainda que n�o em sua forma tradicional. Mas um di�logo interno do eu, pois o tu � apresentado como parte do eu: "...T., colado a mim..." 11 . Mais adiante, o eu admite seu car�ter duplo/triplo: "Transmentiu-me: o embei�o - reflexo, eco, decalque. J� �ramos ambos e tr�s'' 12 . O reflexo, o eco, o decalque � o desdobramento do eu, ou seu duplo 13 , o outro. O que leva a pensar que T pode ser o outro do narrador ou, ainda, T pode corresponder ao Tu de Benveniste.

Nota-se que na trama, ap�s ser introduzido pelo narrador, Titol�vio passa a ser chamado apenas pela inicial de seu nome, T. � pertinente lembrar que a mesma letra T usada para referir-se ao personagem Titol�vio tamb�m � empregada para designar o tempo com o �nico diferencial de este ser em min�scula, t. "O tempo � que � a mat�ria do entendimento" 14 , ou seja, s� o tempo permite o afastamento necess�rio para interpretar-se, ler-se. Nas palavras do narrador, "O futuro s�o respostas" 15 , um futuro sempre plural. E o passado? O tempo passado � lacunar. Ao contar sua est�ria de amor, o narrador admite sua parcialidade nos fatos, admite que esta � uma poss�vel leitura, "releitura da vida" repleta de floreios."Salvem-se c�cega e m�gica, para se poder reler a vida" 16 . Em outro momento, suas palavras s�o reveladoras: "A� a minha mem�ria desfalece. Viver � plural - muito do que n�o vejo nem invejo" 17 . Ele admite a falha de sua mem�ria, e com isso sua recria��o dos fatos, ou releitura da vida. "Viver � plural", viver � recriar, reler sempre um eu outro. O narrador admite sua multiplicidade, admite um ser plural, ou seja, admite um ser somos. Um ser em di�logo, e nunca um ser un�voco. O texto faz ainda mais uma alus�o ao que se refere � releitura da vida, ou recria��o dos fatos, na nomea��o do personagem Titol�vio S�rvulo.

Se eu fosse eu mesmo

O nome deste remete ao historiador romano Tito L�vio 18 que ficou famoso pelo seu estilo inovador. Sua hist�ria era escrita revelando sua parcialidade, questionando personalidades importantes, enfatizando acontecimentos cotidianos e n�o tendo a preocupa��o da veracidade dos dados. A hist�ria contada por ele n�o escondia seu car�ter de est�ria, ou seja, sua abertura ficcional. O tema da impossibilidade de capturar uma verdade absoluta 19 � corrente na narrativa rosiana. Note-se a grande quantidade de vezes que as palavras hist�ria e est�ria s�o encontradas 20 . Em Grande Sert�o Veredas, por exemplo, est�ria aparece 24 vezes e hist�ria 11 vezes. Toda a narrativa do conto baseia-se num recorte ficcional no tempo. A personagem amada aparece est�tica, parada, como um quadro ou ainda uma foto. "Orlanda e uma data, tempo, t?" 21 . Orlanda em uma data espec�fica, parada no tempo, isto �, uma Orlanda "Mesma e minha", cuja alma � "sua minha". Orlanda moldurando o eu, sendo parte do eu 22 . Aqui a personagem feminina faz-se parte do narrador, pluralizando-o uma vez mais. Ela � o terceiro membro da tr�ade, o ele, ou seja, "o ela". Personagem que "n�o surgira apenas: desenhou-se e terna para mim" 23 . Novamente nota-se a marca pessoal de Orlanda, s� existente no eu. A constru��o da personagem feminina do conto, sem voz, e parada no tempo (mas eterna), como em uma gravura, nos permite relacion�-la �s caracter�sticas da terceira pessoa na concep��o de Benveniste, j� que este a considera uma n�o-pessoa. Benveniste destaca a impossibilidade da forma plural do pronome eu, j� que n�s n�o se referece a v�rios eus, ao mesmo tempo que n�s s� existe atrav�s do eu. "N�s n�o � um eu quantificado ou multiplicado, � um eu dilatado al�m da pessoa estrita, ao mesmo tempo acrescido e de contornos vagos" 24 . O contorno vago come�a pelo anonimato do narrador, que � dilatado ao juntar-se ao Tu e a ela. O nome da personagem, Orlanda, ironicamente nos remete � palavra Orla, margem, contorno. Contorno que � visto atrav�s da dilata��o do olhar do personagem/narrador que acontece "depois de drinque inconsiderado" 25 . Um olhar j� b�bado, dilatado, portanto, j� plural. O olhar do b�bado � apresentado j� no pref�cio "N�s, os temulentos" 26 .

O eu do conto, olha-se no espelho com sua amada e revela mais uma parte do eu (que agora j� n�o � t�o an�nimo para o leitor): ela. "Ei-la, alisa a tira da sand�lia, olha-se terna ao espelho, eis-nos. Conclua-se. Somos" 27 . Ela como parte do eu/tu/ele/outro. O narrador como ser plural. Diante de todo esse estado �brio do eu 28 , quem � o eu plural do conto? Uma resposta � possivelmente revelada atrav�s da pergunta final: "Sou - ou transpare�o-me?" 29 , onde o narrador, que j� admite sua pluralidade, vai al�m, questionando-se sobre sua exist�ncia. O eu � algu�m, ou simplesmente parece ser?

Veja-se agora como o eu revela-se j� no enigm�tico t�tulo, "Se eu seria personagem". Come�a-se pela alus�o ao modo subjuntivo, ou seja, uma vontade, se. O que � peculiar � como Rosa brinca com os tempos verbais. Posto que o modo subjuntivo do verbo ser, isto �, fosse, n�o aparece, o que � apresentado � o futuro do pret�rito, seria. A conjuga��o da frase, segundo o padr�o gramatical, seria Se eu fosse personagem. O que esconde, ent�o, por tr�s desta rara substitui��o?

O cr�tico Arnaldo Cortina 30 , numa tentativa de esclarecer o t�tulo, separa o ser do eu an�nimo de seu parecer. Para ele, o narrador n�o � personagem na narrativa que conta, j� que este n�o tem um papel ativo na disputa pela mulher amada. Portanto, a hist�ria que lemos seria a hist�ria de Titol�vio, pois este � o sujeito de todas as a��es, do destaque de Orlanda, a sua conquista, namoro, noivado e finalmente � ele quem � dispensado por ela. O narrador, no n�vel do ser, passa toda a narrativa amando Orlanda e sofrendo calado. Por outro lado, o eu do parecer eximi-se de qualquer a��o. Nem amor nem ci�me ele deixa transparecer. Desse modo, se anula como personagem nessa hist�ria de amor. Sendo assim, Cortina sugere dois n�veis narrativos, ser e parecer e conclui, ent�o, que o narrador an�nimo n�o � personagem desta. Para Cortina, isto justifica o t�tulo do conto. Isto �, se o an�nimo fosse personagem n�o haveria o primeiro n�vel narrativo.

A an�lise do cr�tico mostra-se v�lida, mas n�o considera a mescla dos tempos verbais do t�tulo. Baseando-se em toda a passagem argumentativa mostrada neste texto, pensa-se que a frase t�tulo questiona sobre a exist�ncia do eu. � pertinente observar que o t�tulo, em sua formula��o "agramatical" joga com os tempos e os modos do verbo ser. Mais do que isso, ele est� pontuado de lacunas ocultas, que por sua vez, escondem a condi��o do eu durante a narrativa. Para ser mais claro, com o preenchimento desses espa�os ter-se-ia o seguinte t�tulo: "Se eu fosse eu, eu seria personagem". Indicando, dessa maneira, a exist�ncia de um eu atrav�s do tempo; que somente condicionado a um passado imperfeito, poderia chegar a ser, num futuro deste passado, um personagem. Um eu que est� incapacitado de se ver, como �, posto que s� existe no presente.

Portanto, se o eu � o outro, o tu, o ele, ou seja, se o eu � plural. Se o eu n�o se reconhece fora do presente. Se o eu n�o � nem s� ser nem s� parecer. Se a vis�o do eu � parcial e ao mesmo tempo �nica. Se o eu � travessia. Ent�o, o pr�prio eu � incaptur�vel. Portanto, est� impossibilitado de ser personagem, pois nunca saber� o que � ser eu.

REFERENCIAS BIBLIOGR�FICAS


BAKHTIN, Mikhail. Quest�es de Literatura e de Est�tica. S�o Paulo: Hucitec, 1988.
________________. Problemas da po�tica de Dostoievski. 3 ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Florense Universit�ria, 2002.
BENVENISTE, �mile. Problemas de Ling��stica geral. Trad. Maria da Gl�ria Novak e Luiza Neri. S�o Paulo: USP, 1976.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. 8 ed. Trad. Salma Tannus Muchail. S�o Paulo: Martins Fontes, 1999.
NIETZSCHE, F. "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral". In: Obras incompletas. 3 ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. S�o Paulo: Abril Cultural, 1983.
ROSA, J.G. Grande Sert�o:Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
________. Tutam�ia. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SPERBER, S.F. Caos e Cosmos. Leituras de Guimar�es Rosa. S�o Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.

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* Posee maestr�a en Literatura por la Universidade Federal de Santa Catarina y es licenciada en Letras Lengua y Literatura Espa�ola. Cursa actualmente Letras Lengua y Literatura Inglesa, trabaja como tutora en la Ense�anza a Distancia-UFSC y ejerce la funci�n de coordinadora pedag�gica en escuela privada.

1 FOUCAULT. As palavras e as coisas, 8 ed. Trad. Salma Tannus Muchail. S�o Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 44.

2 ROSA. Tutam�ia, 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 199.

3 Mais diante em seu texto Foucault complementa a id�ia afirmando: "O pensamento n�o � a linguagem e sim sua representa��o", p.44.

4 Id. , p.114.

5 BAKHTIN, M. Quest�es de Literatura e de Est�tica. S�o Paulo: Hucitec, 1988, p. 342.

6 ROSA. Tutam�ia, p. 199.

7 Id. , 200.

8 BAKHTIN, M. Problemas da po�tica de Dostoi�vski. 3 ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Florense Universit�ria, 2002, p. 257.

9 BENVENISTE, �. Problemas de ling��stica geral. Trad. Maria da Gl�ria Novak e Luiza Neri. S�o Paulo: USP, 1976, p. 255.

11 ROSA. Tutam�ia, p. 200.

12 Id. , p.201.

13 BAKHTIN, M. Problemas da po�tica de Dostoievski, p. 128. Bakhtin denomina duplo, personagens que parodiam outro, e "em cada um deles (ou seja, dos duplos) o her�i morre (isto �, � negado) para renovar-se".

14 ROSA. Tutam�ia, p. 201.

15 ROSA. Tutam�ia, p. 201.

16 Id. , p. 202.

17 Id.

18 CORTINA, Arnaldo, et. al. Diferentes Formas de Manifesta��o Do Ci�me: Uma Perspectiva Semi�tica.
Estudos Ling��sticos XXXIII, p. 108-115, 2004. [110 / 115]. Dispon�vel em: www.unicamp.br/iel/gel/4public... 18/3/2006. Acesso em: 22 abril 2006.

19 Em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (1873), Nietzsche aborda o tema, em suas palavras: "Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma 'verdade'", p. 47.

20 Na l�ngua portuguesa admitem-se as duas formas da palavra, mas � recomendado que se use hist�ria para designar tanto ci�ncia hist�rica quanto uma narrativa de fic��o. As duas formas surgiram provavelmente por influ�ncia da L�ngua Inglesa, onde history � a ci�ncia hist�rica e story trata-se da fic��o.

21 Id. Tutam�ia, p. 202.

22 J� em GSV, Riobaldo fala de um Diadorim e uma Otac�lia s� existentes dentro dele. "O Reinaldo era Diadorim - mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otac�lia", p.327.

23 Id. Tutam�ia, p. 199.

24 BENVENISTE, Problemas de ling��stica geral, p. 258.

25 ROSA. Tutam�ia, p. 199.

26 Id. , p. 151

27 ROSA, Tutam�ia, p. 203.

28 Em GSV Riobaldo diz "eu estava b�bado de meu" p.438.

29 ROSA. Tutam�ia, p. 203.

30 CORTINA, Arnaldo, et. al. Diferentes Formas de Manifesta��o Do Ci�me: Uma Perspectiva Semi�tica.
Estudos Ling��sticos XXXIII, p. 108-115, 2004. [110 / 115]. Dispon�vel em: www.unicamp.br/iel/gel/4public... 18/3/2006. Acesso em: 22 abril 2006.



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20 de julio de 2009