Em que momento as nulidades relativas ocorridas na audiência de instrução devem ser arguidas?

05 de Janeiro de 2009

A "nova" lacuna no sistema legal de nulidades causada pela reforma processual

É cediço entre os aplicadores do Direito que a disciplina das nulidades forjada pelo nosso Código de Processo Penal não contém uma sistematização coerente(1), porquanto, ao lado de um extenso rol de casos de nulidades, inserta regras gerais abrindo margem para aplicação interpretativa a cargo do juiz que, necessariamente, deve declarar o ato inválido, uma vez que o vício não pode por outra forma ser reconhecido e declarado. Não se olvide, demais disso, a mudança de ordem constitucional operada em 1988, que encerrou outros tantos casos de nulidades decorrentes de violações das normas magnas e, sobretudo, de princípios que dão concretude a direitos fundamentais cuja violação enseja a declaração de nulidades que vão além do rol previsto no art. 564 do Código de Processo Penal.

Em que pese a crítica tecida à falta de teleologia do pseudo sistema que nosso ordenamento encerra, sempre foi por toda doutrina reconhecido uma teoria geral das nulidades segundo a qual, em regra, os vícios dos atos podem inquiná-los de inexistentes ou nulos, malgrado Helio Tornaghi, isoladamente, ainda distinga os atos nulos dos atos anuláveis(2).

Os atos inexistentes, que também podemos chamar de não-atos(3), decorrem da falta de um ato e não há sequer que se falar em invalidação, pois o ato não existe, como ocorre, exempli gratia, com a falta de citação(4).

Ainda no que respeita à teoria geral das nulidades, temos que as nulidades podem ser classificadas em absolutas ou relativas. Ambas devem ser declaradas pelo juiz, porém podemos identificar, basicamente, quatro diferenças:

(1) No caso da nulidade absoluta a declaração pode ser feita de ofício, ao passo que a nulidade relativa precisa ser provocada mediante argüição da parte prejudicada pela produção do ato nulo;

(2) O princípio pas de nullité sans grief é aplicável a ambas, ou seja, somente haverá declaração de nulidade do ato que, em razão do vício, causou prejuízo à parte, como dispõe o art. 563 do Código de Processo Penal, porém o prejuízo dos atos eivados de nulidades consideradas absolutas é presumido, presunção jure et de jure(5), que não admite prova em contrário, ao passo que os atos eivados de vícios considerados relativos dependem de prova do prejuízo causado à parte que argüiu a nulidade;

(3) A nulidade absoluta pode ser argüida a qualquer momento, inclusive, como já dito ser reconhecida de ofício, ao passo que a nulidade relativa, não apenas deve ser argüida pela parte prejudicada, como o momento para argüição da nulidade relativa é próprio, não se podendo fazê-lo posteriormente;

(4) O ato eivado de nulidade relativa que não for argüido no momento oportuno é sanado, ou seja, torna-se válido, como preceitua o art. 572 do Código de Processo Penal, enquanto o ato eivado de nulidade absoluta não se convalida nunca, nem mesmo depois da sentença condenatória irrecorrível.

Uma vez reconhecida a nulidade de um ato, cuja nulidade não tenha sido sanada, o juiz deve declará-la, pronunciando a que atos ela se estende. Uma vez reconhecidos os atos que foram atingidos pela declaração de nulidade, deverão os mesmos ser renovados ou retificados, conforme regra disposta no art. 573 do Código de Processo Penal.

Com efeito, esta teoria geral das nulidades, exposta acima em brevíssimo apanhado, em nada foi modificada pela reforma do Código de Processo Penal, mesmo porque esta alterou os dispositivos referentes ao Tribunal do Júri (Lei nº 11.689/2008), às provas (Lei nº 11.690/2008) e aos procedimentos (Lei nº 11.719/2008).

O problema está na letra morta em que se tornou a maior parte do art. 571 do Código de Processo Penal e a verdadeira ruptura sistemática que esta derrogação provocou. Senão vejamos:

A maneira técnica de se classificar uma nulidade como relativa ou absoluta é a interpretação sistemática dos dispositivos do Código de Processo Penal com a Constituição.

Uma vez violada a Constituição pela prática de um ato processual, por ser a norma constitucional estabelecida em prol do interesse público, esta nulidade é absoluta(6).

De outro ponto, para identificar-se uma nulidade é relativa ou absoluta quando o ato viola uma norma infraconstitucional, deve-se fazer uma leitura teleológica dos dispositivos do Código de Processo Penal de maneira que o seu entendimento permita classificar operar a classificação. Com efeito, o art. 572 do referido Diploma Legislativo, quando estabelece a listagem de nulidades que poderão ser consideradas sanadas, na verdade declarou os casos de nulidades relativas, porque estas são as únicas que se podem sanar.

Ora, se o dispositivo referido lista os casos de nulidades relativas, é porque estas nulidades, como diz o inciso I do próprio artigo, para serem declaradas devem ser argüidas em momento oportuno, qual seja, os momentos previstos no art. 571 do Código de Processo Penal.

Chegamos ao problema fatual. O referido art. 571 do Código de Processo Penal prevê 8 (oito) momentos em que as nulidades relativas devem ser argüidas, que va­riam conforme o procedimento adotado para julgamento do fato levado à apreciação do Poder Judiciário. Ocorre que as disposições sobre os procedimentos foram alterados pela recente reforma processual, como já visto anteriormente, de sorte que os incisos do art. 571, que faziam referência a outros dispositivos perderam o sentido. Vejamos cada inciso:

“Art. 571. As nulidades deverão ser argüidas:

I – as da instrução criminal dos processos de competência do júri, nos prazos a que se refere o art. 406;”

O antigo art. 406 do Código de Processo Penal previa o momento em que as partes apresentariam suas alegações finais escritas, no prazo de 5 (cinco) dias, na primeira fase do procedimento do júri, que se passa perante um juiz togado. Era, portanto, nas alegações finais que as partes deveriam argüir as nulidades relativas. Com a alteração realizada pela Lei nº 11.689/2008, o novel art. 406 prevê que o juiz ao receber a denúncia ou queixa, mandará citar o acusado para responder a acusação no prazo de 10 (dez) dias. Ora, ainda que se diga que este é o momento para argüição das nulidades relativas no procedimento do júri, não se deve esquecer que o art. 571 não prevê nenhum outro momento para argüição de nulidade antes da pronúncia, de tal forma que a interpretação literal do art. 571 combinado com o art. 406, ambos do CPP, levaria ao absurdo de que não é possível argüir nulidades relativas ocorridas entre a apresentação de defesa escrita, que ocorre no início do procedimento, e a pronúncia, devendo aquele que for prejudicado pela prática de um ato eivado de nulidade relativa suportar os efeitos prejudiciais do mesmo, por não haver momento próprio para sua argüição.

“II – as da instrução criminal dos processos de competência do juiz singular e dos processos especiais, salvo os dos Capítulos V e VII do Título II do Livro II, nos prazos a que se refere o art. 500;”

O antigo art. 500 previa que, encerrada a instrução e concluídas as diligências, se requeridas, as partes teriam 3 (três) dias para apresentar alegações finais escritas. Este era o momento para argüição de nulidades relativas. O art. 500 foi revogado pela Lei nº 11.719/2008. Pergunta-se: não há mais momento para argüir nulidades relativas ocorridas nos procedimentos ordinário e especiais? Não podemos chegar a este absurdo.

“III – as do processo sumário, no prazo a que se refere o art. 537, ou, se verificadas depois desse prazo, logo depois de aberta a audiência e apregoadas as partes;”

O antigo art. 537 tratava do prazo de 3 (três) dias, logo após o interrogatório, em que o acusado podia apresentar defesa prévia. Este era o momento para argüir nulidades relativas até o ato de interrogatório. A Lei nº 11.719/2008 revogou o art. 537. Mais uma vez, pergunta-se: não há mais momento para argüir nulidades relativas ocorridas no procedimento sumário? É bem verdade que este inciso, especificamente, determinava que as nulidades ocorridas depois da defesa prévia (que não existe mais como antes era regulada), seriam argüidas logo depois de aberta a audiência e apregoadas as partes. Esta determinação é possível manter, tendo em vista que o interrogatório já não mais se realiza antes da audiência de instrução e julgamento em um ato a parte? Não pensamos que esta seja a interpretação mais consentânea com as exigências de realização teleológica do processo como um sistema e as nulidades como um subsistema deste.

“IV - as do processo regulado no Capítulo VII do Título II do Livro II, logo depois de aberta a audiência;”

Este não foi alterado, mantendo-se integralmente aplicável.

“V - as ocorridas posteriormente à pronúncia, logo depois de anunciado o julgamento e apregoadas as partes (art. 447);”

Antigamente o art. 447 dizia que o presidente do Tribunal do Júri abriria a sessão, tomando algumas atitudes, e, por fim, anunciando o julgamento e apregoando as partes, ao passo que hoje o art. 447, alterado pela Lei nº 11.689/2008, diz apenas que o Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento, mais nada, sendo absolutamente incompatível esta disposição com a determinação de um momento para argüição de nulidade relativa. Pergunta-se, mantém-se o momento de argüição de nulidade com a abertura da sessão, após o compromisso dos jurados, a que se refere o atual art. 472 do CPP, ou em outro momento?

“VI - as de instrução criminal dos processos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, nos prazos a que se refere o art. 500;”

Este dispositivo já se encontrava revogado tacitamente pela Lei nº 8.038/90

“VII - se verificadas após a decisão da primeira instância, nas razões de recurso ou logo depois de anunciado o julgamento do recurso e apregoadas as partes;”

Como este inciso não faz referência a artigo de lei específico, mas a momento processual que continua existindo na sistemática procedimental atual, nada muda quanto à sua disposição.

“VIII - as do julgamento em plenário, em audiência ou em sessão do tribunal, logo depois de ocorrerem.”

O mesmo que foi dito, com relação ao inciso anterior a este se aplica, ou seja, como não faz referência a artigo de lei específico, mas a momento processual que continua existindo na sistemática procedimental atual, nada muda quanto à sua disposição.

Assim, podemos dizer que fora o inciso VI, que já estava tacitamente revogado, e os incisos IV, VII e VIII, cujo texto não remete a alterações da reforma processual, todos os demais incisos foram atingidos de tal forma que sua aplicação prática tornou-se impossível.

O que fazer com esta nova lacuna criada pela reforma processual? Transformar todas as nulidades em absolutas, já que não existe na lei a previsão expressa do momento oportuno para argüir as nulidades relativas? Determinar que estas nulidades devam ser declaradas na primeira oportunidade em que a parte prejudicada falar nos autos?

Neste ponto nos remetamos à lição de Norberto Bobbio em sua formulação da Teoria do Ordenamento Jurídico(7), a qual, segundo o próprio filósofo, é a maior contribuição do positivismo para o Direito. De fato, independente do fundamento filosófico em que se fulcre o pensamento do intérprete, a compreensão do Ordenamento como um sistema que tem por dogma a completude é uma necessidade. Sobretudo se, como o próprio Bobbio, admitirmos que há lacunas próprias no Ordenamento, ou seja, espaços que não decorrem da incompatibilidade entre a ideologia ideal do sistema e suas normas, mas na falta de norma internamente ao próprio sistema. Esta lacuna própria pode ser completada pelo intérprete, recorrendo à analogia legis ou à analogia juris. A primeira é a busca de solução para um fato em norma semelhante, ao passo que a segunda é a busca da solução nos princípios gerais.

Rompendo com a ideologia avalorativa positivista, temos que o sistema deve ser completo também pela coerência dos valores que encerra. Daí porque, no caso presente, esta lacuna própria do Ordenamento precisa ser preenchida com a aplicação dos princípios gerais do processo penal.

Em primeiro lugar devemos ter como certo que a reforma processual não eliminou a diferença entre nulidades absolutas e nulidades relativas, haja vista que o art. 572 do CPP é vigente e aplicável. Portanto, não podemos adotar a solução de simplesmente igualar as nulidades e fazer letra morta aquilo que ainda vige.

Em segundo lugar, é impensável limitar os direitos à ampla defesa dos acusados em um processo penal limitando seu momento de argüição de nulidades relativas ao primeiro momento em que o mesmo tiver a oportunidade de falar nos autos após a prática do ato nulo. Seria uma violação não apenas do princípio da ampla defesa, mas também do favor rei.

Desta forma, não temos dúvida em afirmar que o momento para argüir as nulidades relativas é o último ato processual a ser praticado pela parte prejudicada pela nulidade antes do juiz proferir a sentença, o que ocorreria nas alegações finais, que hoje são, em regra, orais. Assim, estaria sendo mantida a integridade do sistema, sem desnaturar a classificação das nulidades e sem eliminar os direitos e garantias do cidadão. De outra maneira, o sistema processual penal brasileiro de matiz acusatória e garantista restaria irreparavelmente desfigurado.

Notas

(1) Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, As Nulidade no Processo Penal, 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 31.

(2) Helio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1959, pp. 64/65.

(3) Ada Pellegrini Grinover et al., op. cit., p. 22.

(4) Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, 3º vol., 24ª ed., São Paulo, 2002, p. 115.

(5) Fernando da Costa Tourinho Filho, op. cit., p. 119, afirma que há presunção absoluta de prejuízo no caso de nulidades absolutas, ao passo que Ada Pellegrini Grinover et al., op. cit., p. 33, afirma que não é caso de presunção de prejuízo, mas de evidência de prejuízo, pois entende que as presunções normalmente admitem a inversão do ônus da prova, problema que parece não existir na doutrina de Tourinho na medida em que a presunção por ele sustentada é jure et de jure.

(6) Ada Pellegrini Grinover et al., op. cit., p. 29.

(7) Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª ed., tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Brasília: UnB, 1999.

Antonio Santoro
Doutor e mestre em Filosofia do Direito pela UFRJ; mestrando em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada/Espanha; especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Portugal; especialista em Direito da Economia pela FGV/RJ; professor da Universidade Veiga de Almeida e Universidade Gama Filho; advogado

Qual momento para arguir nulidade relativa?

Quanto a nulidade relativa, deve ser argüída no momento oportuno, sob pena de preclusão. Assim, deve ser verificado, no sistema processual, qual o ato passível de nulidade, pois cada procedimento possui um momento fatal para argüição.

Quando as nulidades devem ser arguidas?

AS NULIDADES DEVEM SER ARGUIDAS NA PRIMEIRA OPORTUNIDA- DE EM QUE COUBER A PARTE A FALAR NOS AUTOS, SOB PENA DE PRECLUSAO. A CONTROVERSIA ENCONTRA-SE PLENAMENTE ADEQUADA A HIPO- TESE, DIANTE DA CIRCUNSTANCIA PREVISTA NO INCISO II DO ART.

Qual é o primeiro momento em que deve ser arguida a nulidade relativa ocorrida durante o julgamento em plenário do júri?

As nulidades ocorridas durante o julgamento em plenário do júri devem ser arguidas logo depois de ocorrerem.

Qual o momento oportuno para a arguição das nulidades relativas nos termos do art 571 CPP?

O art. 571 estabelece o momento em que as nulidades relativas devem ser sanadas, sob pena de convalidação do ato viciado. Outro caso de convalidação é o caso do artigo 569 (omissões que podem ser supridas até antes da sentença final).