Quais as características do processo de abertura da economia chinesa?

O desempenho da economia chinesa nas últimas décadas, independente da bagagem ideológica daquele que a analisou, é notável — isso é fato. Afinal, basta uma breve comparação da evolução do PIB chinês com o de países semelhantes — como os outros membros do BRICS — para perceber a discrepância.

Quais as características do processo de abertura da economia chinesa?
Evolução do PIB dos países-membros do BRICS.

Entretanto, atribuir o bom desempenho da economia chinesa a decisões centralizadoras do Partido Comunista Chinês, como se uma economia centralizada fosse capaz de realizar um milagre econômico como aquele observado na China, não condiz com a realidade dos fatos. Como ficará mais claro adiante, o ótimo desempenho econômico chinês nas últimas décadas é resultado de um misto de liberalização econômica com dirigismo estatal.

Para compreender a performance do PIB chinês é necessária uma análise histórica da sua evolução e os seus fatores determinantes.

Resumo histórico

O Partido Comunista tomou o controle da China continental em 1949, quando terminaram os conflitos da Guerra Civil Chinesa, que reduziu o controle do Kuomintang — Partido Nacionalista — a apenas Taiwan e Hainan. Em 1 de outubro de 1949, Mao Tsé-Tung proclamou a criação da República Popular da China.

Com Mao Tsé-Tung no poder, o Partido Comunista Chinês (PCCh) implementou o Grande Salto para Frente, em 1958. O plano pretendia transformar a República Popular da China de uma nação atrasada em uma economia avançada e socialista, acelerando a coletivização do campo, através de uma Reforma Agrária forçada, e a industrialização urbana.

De campos de trabalho forçado, com objetivo de intensificar a produção agrária, à repressão por qualquer quantidade estocada de grãos, a consequente ineficiência alocativa de produtos alimentícios resultou na morte de aproximadamente 20 milhões de chineses.

O Partido Comunista Chinês era dominado por duas elites partidárias. A primeira era identificada como “elite funcional” — herdeira da burguesia e dos intelectuais: professores, engenheiros e artistas. Já a segunda, a “elite militante” — oriunda do período das Comunas de Shangai e da luta contra o Japão, na Segunda Guerra Sino-Japonesa.

O fracasso do “Grande Salto para Frente” desgastou a influência da elite militante — liderada por Mao — dentro do PCCh. O desgaste abriu caminho para a elaboração de um plano de reestruturação econômica desenvolvido pela elite funcional, representada por Liu Shao-Chi e Deng Xiaoping.

Como resposta, a elite militante implementou sucessivos programas de reeducação ideológica, dando início a uma série de medidas buscando a modificação da orientação política dentro dos setores culturais, de ensino e de propaganda, culminando no que ficou conhecido como a Revolução Cultural Chinesa.

Quais as características do processo de abertura da economia chinesa?
A propaganda oficial mostrava Mao como seguidor de Stalin, Lenin, Engels e Marx.

Com a morte de Mao Tsé-Tung em setembro de 1976, a elite militante perdeu o controle do PCCh. Os responsáveis pelos excessos cometidos durante a Revolução Cultural foram julgados e condenados. A elite funcional — representada por Deng Xiaoping — ascendeu ao poder, o que possibilitou a implementação das reformas de abertura, viabilizando a ascensão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) três décadas depois.

As reformas econômicas e a liberalização da economia

Obviamente a China não se transformou em uma economia de mercado da noite para o dia — aliás, mesmo após a sua entrada na OMC, permaneceu o debate sobre sua classificação como economia de mercado.

Desse modo, várias disputas foram submetidas contra a China no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Alguns casos emblemáticos, como o das políticas destinadas a incentivar a produção local e o desestímulo das importações, foram demandadas em conjunto pela União Europeia, Canadá e Estados Unidos.

Quais as características do processo de abertura da economia chinesa?
Evento que celebrou os 40 anos das reformas de abertura.

Além disso, as reformas, pelo menos as implementadas durante o governo de Xiaoping, não tinham intenção de abandonar o pressuposto comunista na condução da política econômica, apesar do afastamento. Isso foi deixado claro pelo próprio Deng Xiaoping.

Entretanto, não se pode negar que o aspecto conjuntural — aliando fatores econômicos, culturais e sociais — conduziu a China de um país completamente isolado economicamente a uma economia integrada, globalizada e com características singulares.

Em 1978 foi aprovado o “Programa de Quatro Modernizações”, dando início ao processo de liberalização econômica chinesa. O programa procurava modernizar 4 setores econômicos estruturais: agricultura, indústria, defesa e a ciência e tecnologia.

Uma das primeiras medidas de impacto foi o afrouxamento no controle do sistema de formação de preços, atingindo inicialmente o setor rural. Os preços, que antes eram determinados pelo Governo Central, passaram a abrigar um sistema misto. O Governo Central determinava uma cota de produção — a um determinado preço — , mas o excedente poderia ser comercializado livremente no mercado.

Ao longo do tempo, gradativamente os preços foram liberalizados, abarcando também outros setores da economia. Em 1978, aproximadamente 97,5% dos preços dos bens vendidos no varejo eram guiados pelo Governo Central. Esse percentual caiu para 55% em 1988 e 7% em 1992.

Outra característica foi o processo de abertura ao comércio exterior, que era completamente planejado pela autoridade central. As restrições para importações foram substituídas por tarifas aduaneiras que — apesar de inicialmente elevadas — foram reduzidas no decorrer dos anos.

Em 1985, uma reforma do sistema tarifário reduziu a alíquota média de 55,6% para 43,3%. A partir de 1992, teve início outro processo de redução, que levou a alíquota média para 15,3% em 2001. Como contrapartida à redução tarifária, a orientação da política cambial chinesa, com objetivo de estimular o crescimento das exportações, buscava a desvalorização da moeda chinesa, o Yuan.

A proximidade geográfica com outras economias asiáticas, como Hong Kong, inspirou a criação, em 1980, de quatro Zonas Econômicas Especiais (ZEEs): em Shenzhen, Zhuhai, Shantou e Xiamen. Nessas ZEEs, foram concedidos diversos incentivos fiscais e de crédito, induzindo o desenvolvimento de um polo industrial direcionado ao mercado externo.

Quais as características do processo de abertura da economia chinesa?
Localização geográfica das ZEEs.

Além disso, foi introduzido um sistema de câmbio dual. O oficial era administrado a uma taxa flutuante, e o “mercado de swaps” — ainda mais desvalorizado — destinado às empresas das ZEEs.

Devido aos resultados positivos, foram criadas, ao longo do litoral, outras 14 ZEEs semelhantes. Durante a década de 80, as áreas disponíveis para investimentos estrangeiros foram expandidas rapidamente, atingindo todo o litoral e até alguns pontos no interior do país na década seguinte.

Inicialmente, as empresas multinacionais dirigiram-se exclusivamente às ZEEs, atraídas pelos incentivos fiscais, disponibilidade de terrenos e edificações, e infraestrutura de energia e transporte. O crescimento dos Investimentos Diretos Externos (IDEs), entre 1981 e 2007, pulou de US$ 265 milhões para US$ 138 bilhões.

Como compensação aos incentivos, foram firmados compromissos para a realização de transferência de tecnologia e geração de ciência, bem como a abertura de centros de Pesquisa e Desenvolvimento no país. Contudo, apesar da abertura ao comércio exterior, ainda persistem restrições de acesso ao mercado doméstico chinês.

A indústria e as empresas estatais

Entre 1980 e 1990, o crescimento econômico da China atingiu a taxa de 9,5% ao ano. Entre 1978 e 2007, a média de crescimento foi ainda maior, de 9,7%. Estes números conferem à China uma performance única na economia mundial.

Apenas para se ter uma ideia, com uma taxa de crescimento de 7% ao ano, durante 30 anos, o PIB seria multiplicado por menos de 8. Já com uma taxa 10%, pelo mesmo período, o mesmo valor é multiplicado por 17.

O alto crescimento da economia chinesa está diretamente atrelado ao processo de desenvolvimento industrial iniciado em 1978. Entre 1978 e 1991, o setor industrial liderou a taxa de crescimento do PIB e do emprego.

Até 1978, a produção de bens duráveis de consumo limitava-se a máquinas de costura, bicicletas, relógios e rádios. Com a diversificação da produção, introduzindo novos bens manufaturados — geladeira, televisão, gravador, máquina de lavar, entre outros — , a produção industrial registrou taxas expressivas de crescimento.

Com a expansão do setor industrial, o investimento bruto alcançou aproximadamente 35% do PIB, com máxima de 40% em 1985. As empresas estatais (EEs) foram responsáveis por um valor superior a 65% dos investimentos realizados — direcionados principalmente à expansão da capacidade produtiva.

As EEs constituem uma temática central na agenda da política econômica chinesa, gerando grandes controvérsias. Apesar das reformas pró-mercado introduzidas, o setor produtivo estatal foi concentrado em grupos tidos como estratégicos pelo Governo Central.

Com a concentração, as empresas estatais adquiriram características monopolísticas, assumindo quase a totalidade da participação nos seus mercados de atuação. Além disso, a relação sistemática com os Bancos Públicos, levando à concessão de juros subsidiados, proporcionou uma vantagem significativa em competitividade no mercado internacional.

Alguns estudos indicam que as vantagens provenientes da posição monopolística das estatais permitiu o bom desempenho das EEs no início dos anos 2000. Esses estudos indicam a existência de um sistema de transferência de riqueza em benefício dos grupos econômicos estatais, uma vez que há concessão discricionária de subsídios.

O modelo chinês, baseado em investimentos e exportações, estimulado pela restrição ao mercado doméstico por empresas estrangeiras e pela concessão de benefícios e instrumentos para garantir a competitividade dos setores produtivos estatais, apresenta restrições para a sustentação no longo prazo.

A elasticidade da oferta de trabalho chinesa, uma condição básica para a continuidade sustentada do modelo, passou a contrair. Os salários reais da indústria crescem a uma taxa média de 10% ao ano, maior que o crescimento projetado da indústria. Além disso, a redução da demanda global — após a crise de 2008 — restringiu o efeito dinâmico das exportações na composição do PIB e na geração de empregos.

Atualmente, a resistência às reformas de abertura econômica se originam da coalizão de interesses entre os setores políticos e os setores produtivos estatais. Contudo, após o 12º Plano Quinquenal de 2011 e a terceira reunião do Comitê Central do Partido Comunista da China foi estabelecida como meta a implementação de uma economia baseada no consumo doméstico, canalizando cerca de 30% dos lucros das estatais chinesas para uma rede de seguro social.

Apesar disso, nas mesmas reuniões, foi defendido o fortalecimento dos grupos estatais e a sua posição de liderança no processo de desenvolvimento da economia. Por hora, o verdadeiro desafio é a implementação das diretrizes definidas, que depende da capacidade de enfrentar e vencer as resistências dentro do partido.

Os custos sociais e políticos do crescimento econômico chinês

Partindo de uma análise meramente econômica, o modelo chinês de desenvolvimento é apresentado como síntese prática do debate entre o direcionamento estatal da economia e o livre mercado, adotando características singulares de ambos os modelos.

Entretanto, a análise econômica isolada ignora fatores cruciais de origem sociológica e política, que se traduzem como custos ao crescimento extraordinário e aparentemente sustentado da estrutura econômica chinesa.

A reorientação econômica iniciada em 1978, que introduziu mecanismos de mercado, não foi acompanhada — pelo menos não na mesma intensidade — por uma abertura política com preceitos de inclusão social e liberdade política.

Quais as características do processo de abertura da economia chinesa?
Homem se posiciona à frente de um comboio de tanques durante os protestos de 1989.

Imprensa estatal chinesa publicou um editorial em que descreve que o “incidente” de 4 de junho de 1989 “se tornou um fato histórico esquecido”, e que este esquecimento permitiu a China seguir com seu desenvolvimento econômico espetacular.

Fonte.

A sociedade chinesa é subserviente ao Estado, se apresentando como instrumento para atingir um fim determinado, independente das consequências práticas reais. O objetivo final se torna mais importante que os malefícios colaterais.

O zelo pelos direitos humanos não é um princípio compartilhado pelo Governo Central. Contrariar ou questionar as decisões do Partido pode ter consequências graves. Não é incomum relatos de desaparecimento ou morte — em circunstâncias estranhas — de pessoas que denunciaram os excessos cometidos em nome do Estado.

Além disso, a liberdade de imprensa praticamente inexiste. De acordo com a ONG Repórteres Sem Fronteiras, entre 180 países elencados a China ocupa a 178ª posição em facilidade de acesso ao jornalismo independente.

A democracia liberal, caracterizada pela limitação da extensão do poder do Estado, pelo respeito aos direitos individuais, pelo pluralismo e participação popular na tomada de decisões políticas, é o custo do modelo econômico chinês. Adotar a China como exemplo é retroceder nas conquistas que resultaram no progresso político das sociedades democráticas modernas.

Referências

Marcelo Nonnenberg – China: estabilidade e crescimento econômico

Carlos Aguiar de Mederios – Economia e política do desenvolvimento recente na China

Carlos Aguiar de Mederios – Notas sobre o Desenvolvimento Econômico Recente na China

CNI – Políticas industriais e comerciais da China: Sob a perspectiva das regras da OMC

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Quais são as principais característica da economia chinesa?

Características da economia chinesa A China caracteriza-se como uma “economia socialista de mercado”, ou seja, um sistema político estatal controlado pelos líderes do Partido Comunista, os quais assumem a posição de defensores dos interesses da nação e, ao mesmo tempo, exercem práticas capitalistas de mercado.

Quais são as características da China socialista no processo de abertura econômica?

Por meio da implantação de um regime socialista com o apoio do Partido Comunista Chinês, decretou que o Estado chinês controlaria todos os meios de produção (rurais e urbanos), além de determinar a existência das fazendas coletivas ou comunas populares estatais.

Quais foram os principais objetivos da abertura econômica chinesa?

Outra base para a evolução do crescimento chinês foi a criação de Zonas Econômicas Especiais (ZEE)[ii]. Essas Zonas possuem como objetivos principais: atrair investimentos estrangeiros, desenvolver a produção tecnológica do país e absorver as inovações tecnológicas desenvolvidas nos países mais avançados.

Como ocorreu o processo de desenvolvimento da economia chinesa?

A economia chinesa experimentou, a partir da década de 70, depois de passar séculos dependendo quase inteiramente de seu setor agrícola e de experimentar as mudanças (trazidas pela revolução comunista de Mao Tse Tung), um grande crescimento econômico, o país se abriu ao investimentos estrangeiros, após a chegada ao ...