Por que os imigrantes que vivem na Europa tem sofrido com a xenofobia nas últimas décadas?

Introdução

A despeito da propagação da imagem do Brasil como um país de braços abertos a todos os migrantes, na prática muitos dos sujeitos que escolheram o país como seu destino para viver sofrem, em diversas ocasiões, preconceitos e atos xenófobos. Esses atos vão desde a abordagem leviana do sistema midiático sobre as migrações e seus sujeitos, passando por agressões verbais que reiteram a falta de reconhecimento dos direitos dos migrantes e a não-aceitação desses indivíduos na sociedade local, até os casos de violência e crime contra sujeitos migrantes.

Tal realidade é primeiramente relacionada a estigmas resultantes do processo de colonização do Brasil, que deixou uma herança rural e escravocrata, com preconceito contra os negros e pobres. Assim, migrantes transnacionais que possuem algum destes pertencimentos, raciais ou sociais, sofrem duplamente com atos preconceituosos. Historicamente no Brasil os fluxos migratórios foram restritos e resultado de processos seletivos. As políticas migratórias, procedendo da campanha republicana brasileira oitocentista até o período entre guerras, buscavam diretamente a seleção de grupos migratórios que estariam de acordo com as aspirações nacionais, em uma prática classificatória identificada como um racismo metodológico (Barreto, 2015).

Contemporaneamente, o discurso difundido, principalmente pela mídia, que também reproduz discursos internacionais, tem como mensagem reproduzida a de uma invasão de sujeitos migrantes, que chegam ao país de destino para roubar o emprego dos nacionais e para cometer crimes. Essa narrativa auxilia nos argumentos daqueles que praticam atos xenófobos. A relação discursiva entre migração, desemprego e crimes é internacionalmente reproduzida, o que faz com que mesmo as campanhas que buscam mostrar a importância da migração para diferentes sociedades também enfatizem a figura do “bom imigrante”, com foco nas questões profissionais e econômicas, suprimindo as questões sociais e de direitos humanos relacionadas à migração, conforme apontado por Cogo e Riegel (2016). Assim, somente alguns migrantes são considerados desejáveis, a maioria é classificada como indesejável, de situação socioeconômica precária, e criminosa.

Esses discursos não são, no entanto, somente presentes atualmente, eles também reproduzem diversas das camadas discursivas construídas historicamente na relação entre migração e sujeitos indesejados, e no caso brasileiro especificamente possuem a questão de raça como elemento crítico (Lesser, 2015), uma vez que esse é um problema constituinte da sociedade local.

Esse contexto fica explicitado diante, por exemplo, de episódios de xenofobia e racismo envolvendo a migração haitiana. Um deles envolveu a publicação, em maio de 2016, pelos jornais Agora e Folha de São Paulo, da foto de um migrante haitiano recém-chegado do Acre tomando banho com água de um mictório na sede da Missão Paz, no centro de São Paulo. A publicação da foto, que não teria sido autorizada pelo migrante, desencadeou um conjunto de reações negativas por parte de organizações e redes migratórias, tanto após sua publicação quanto após ter sido indicada como vencedora do Prêmio de Jornalismo e Direitos humanos Vladimir Herzog (Cogo, Pássaro, 2017). Outra controvérsia foi desencadeada por um vídeo, publicado em junho de 2015 (Moraes, 2015), em que um migrante haitiano que trabalhava como frentista foi agredido verbalmente por um cidadão na cidade de Canoas, Rio Grande do Sul, que o acusou, dentre outros, de “tirar o emprego de brasileiros”. Diante do crescimento de atos xenófobos no país, o governo brasileiro, por intermédio do Ministério da Justiça (responsável pelo controle da entrada e da permanência de estrangeiros em território nacional recorrendo à Polícia Federal), lançou campanhas relacionadas à questão da migração. Inicialmente, em agosto de 2015, fez uma campanha denominada #refugiado, com imagens e falas de refugiados, com o principal objetivo de explicar à população o que é estar em situação de refúgio (Figura 01).

Por que os imigrantes que vivem na Europa tem sofrido com a xenofobia nas últimas décadas?

Figura 1
Peça de comunicação da campanha do Ministério da Justiça sobre refugiados (#refugiado)
Fonte: Ministério da Justiça (2015).

Em outubro de 2015, lançou a campanha denominada #Eutambemsouimigrante. A campanha remetia ao histórico da formação da população brasileira por migrantes. Veiculada em espaços digitais, como website (www.eutambem­souimigrante.com.br) e o site de rede social Facebook (@JusticaGovBr), a cam­panha teve como proposta a reconstituição e inserção da origem migratória de cada usuário, a partir de diferentes grupos de migrantes que chegaram ao país ao longo da história. Em 2016, ela foi retirada do ar por controvérsias causadas por suas publicações.

Considerando, portanto, a necessidade da produção de #Eutambemsouimigrante, sua comunicação e suas repercussões, esse artigo tem como objetivo analisar o contexto dos discursos relacionados à formação dessa campanha, os textos que foram produzidos em sua divulgação, assim como algumas das reações que a retiraram de veiculação.

Para essa análise, desenvolvemos inicialmente um debate em torno dos movimentos migratórios e o direito à mobilidade, apresentando o cenário mundial em números gerais, e mais especificamente o histórico e o contexto contemporâneo desses fenômenos no Brasil. Em um segundo momento, analisamos os textos das principais peças da campanha #Eutambemsouimigrante, com base na proposta de análise crítica do discurso de Fairclough (2001), orientada por três dimensões observadas nos textos da campanha: a) problema social e aspectos do discurso; b) elementos discursivos do problema social (atores sociais, espacialidades e práticas sociais); e c) reflexão crítica com base na análise do discurso sobre o problema social.

Movimentos migratórios e o direito à mobilidade

Aprovada em 1948 na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU, 1948), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) estabelece os direitos essenciais a todos os seres humanos, sem que haja discriminação por gênero, raça, cor, idioma ou por qualquer outro motivo, como religião, nacionalidade ou opinião política, por exemplo. A novidade deste documento internacional reside na amplitude dos destinatários: todos os seres humanos, mesmos os contidos em Estados não signatários da Declaração. O conteúdo do material também inova ao especificar direitos econômicos, sociais e culturais. Ressaltamos, dentre outros direitos, o artigo n° 13, onde: 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado e 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Historicamente recente, o documento não abarca, obviamente, os fluxos migratórios anteriores à Declaração Universal, e a própria construção deste material objetiva a delimitação de direitos duramente violados no período das guerras, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, que deveriam ou deverão ser respeitados. Embora recente, o documento tem respaldo no direito internacional e no direito humanitário dos séculos XVIII e XIX, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, instituído na França em 1789 e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776. Interessa-nos apontar, neste momento, o direito universal do homem à mobilidade, ou seja, ao deslocamento interno ou externo a um Estado-Nação.

Na acepção clássica do termo, os deslocamentos são chamados de migração, sendo diferenciados os movimentos de entrada e saída, tais como imigração e emigração, respectivamente. Entretanto, essa diferenciação não responde a questões históricas simples como: os portugueses quando vieram colonizar o Brasil eram imigrantes, uma vez que o território brasileiro era de propriedade portuguesa? A simplificação do termo como fluxo de entrada e saída, ignora também a experiência do deslocamento e a dinâmica fluida dos diversos fluxos migratórios, nem sempre definitivos, mas muitas vezes transitórios e realizados para múltiplos destinos. Neste sentido, é preciso pensar além dos fluxos de entrada e saída e suas abordagens generalizantes para enfoques plurais, originados por uma diversidade de fatores entre dinâmicas locais e variantes regionais. Compreender que o fenômeno migratório se apresenta como um “fato social total” (Seyferth, 1996: 16), onde a dupla dimensão constituinte deste fato social, emigração e imigração, está ligada a “ordens nacionais” relacionadas entre si. O que se “permite refletir sobre os múltiplos interesses envolvendo as políticas migratórias nos dois extremos do contínuo” (Seyferth, 1996: 24).

Além das informações macroeconômicas ou da política dita mundial, é preciso correlacionar esses dados ao local, ao circunscrito de cada país, isto é, reconstruir os debates entre o global e o local. Entender que os fluxos migratórios são diversos e com especificidades próprias. A partir deste ponto de vista, visualizamos que há uma heterogeneidade e variedade de interesses dentro de um mesmo fluxo migratório. Nesta perspectiva de múltiplas dimensões para os fluxos migratórios, fica patente o contraste entre o imaginário popular de fundo nacionalista perpetuado pelos meios de comunicação frente aos dados históricos e socioculturais dos diferentes movimentos migratórios, especificamente, no caso brasileiro. Ademais, os trânsitos provisório ou permanente dos migrantes são regidos pelas políticas migratórias próprias, ainda que se conteste o direito internacional à mobilidade.

Historicamente, os deslocamentos populacionais têm-se tornado crescentes, mesmo diante da taxa de crescimento populacional global. Dados do relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), no ano de 2015, apontaram para o nível recorde de deslocamentos forçados de pessoas por guerras, conflitos e perseguições. A tendência de crescimento, originada em 2011, já ultrapassou os 60 milhões de refugiados no mundo (UNHCR, 2015). Estima-se que o número total de migrantes já tenha ultrapassado os 244 milhões. Um aumento de 41 por cento em comparação aos anos 2000.

Dentre os migrantes transnacionais na América Latina, ou seja, pessoas vivendo em um país diferente de onde nasceram, estima-se aproximadamente 3,70% (9 milhões) do total de migrantes transnacionais. Soma-se aos diversos fatores que compõem os fluxos migratórios internacionais, os movimentos internos de cada país. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 2009) apontam para uma indefinição e uma maior complexidade das migrações internas no território brasileiro, em um comportamento diferente do que se podia verificar em décadas ou qüinqüênios anteriores (Baeninger, 2012). Neste sentido, segundo Baeninger (2012: 4) acredita-se que à “medida em que os espaços nacionais se conectam aos espaços globais – via mobilidade do capital – as migrações internas redefinem seus significados no contexto nacional e nas demais escalas regionais e locais”.

Ao nos referirmos à mobilidade de capital, leia-se, globalização, concordamos que é preciso entender as ações desta política econômica nos deslocamentos espaciais da população. “Além disso, as migrações, as fronteiras permeáveis e as viagens falam, em seus estranhamentos, daquilo que a globalização tem de fratura e segregação”, ressalta García Canclini (2003: 9). Para o autor, a globalização se apresenta como objeto fugidio e não-trabalhável, descrita por meio de narrações e metáforas, sendo necessário a análise a partir “de uma perspectiva sócio-antropológica da cultura, tanto as estatísticas e os textos conceituais como as narrativas e imagens que tentam nomear seus desígnios. [...] É nos relatos e imagens que aparece o que a globalização tem de utopia e o que ela não pode integrar” (Canclini, 2003: 09-13). Uma globalização imaginada por muitos e concretizada por poucos.

Segundo o pesquisador George Martine (2005), a partir do trabalho da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), o processo de globalização é parcial e inacabado, implicando diretamente nas migrações internacionais. Em seu estudo, o pesquisador destaca as discrepâncias do discurso liberalizante dos países desenvolvidos frente à realidade protecionista das políticas praticadas por eles. Elabora-se a ilusão que os países soberanos são parceiros igualitários nas transações comerciais. Cria-se a compreensão que o lugar do ser humano é o mundo. Neste sentido, o horizonte do migrante não se restringe à cidade mais próxima, nem à capital do estado ou do país. Seu horizonte é o mundo – vislumbrado no cinema, na televisão, na comunicação entre parentes e amigos. O migrante vive num mundo onde a globalização dispensa fronteiras, muda parâmetros diariamente, ostenta luxos, esbanja informações, estimula consumos, gera sonhos e, finalmente, cria expectativas de uma vida melhor (Martine, 2005: 03).

Martine (2005) destaca algumas das contribuições das migrações, tais como: a possibilidade de uma mobilidade social entre os imigrantes e entre os moradores da cidade receptora, uma vez que os imigrantes contribuem para preencher lacunas demográficas e laborais; dinamismo econômico no país de origem a partir das remessas para as famílias; recebimento de uma grande quantidade de recursos humanos qualificados e que expandem a base de consumidores e de contribuintes (impostos) no país receptor. O autor também pondera algumas desvantagens dos movimentos migratórios, ressaltando que poderiam ser amenizadas a partir de políticas públicas. Dentre elas, está a seletividade de grupos migratórios, ou seja, a classificação entre “desejáveis” e “indesejáveis”; o aumento, em alguns casos, de racismo e xenofobia; a dificuldade de comunicação e adaptação de alguns imigrantes, bem como o fator de risco no deslocamento, especialmente, para idosos e crianças.

Para tanto, faz-se necessário desvelar as implicações evidentes, implícitas e nem sempre problematizadas, da globalização sobre as migrações internacionais, partindo do pressuposto que o deslocamento espacial faz parte das estratégias de sobrevivência e de mobilidade social da população. Atentos também ao processo comunicacional onde o debate é apresentado, amenizado ou, em alguns casos, até mesmo tensionado.

Migrações transnacionais no Brasil

Faz parte do imaginário brasileiro, reforçado contemporaneamente na fala de políticos e dirigentes de órgãos públicos, a noção do Brasil como país acolhedor de diversas nacionalidades do mundo. Apontado hipoteticamente como constituído na junção de três “raças” - o europeu (branco), o africano (negro) e o indígena (amarelo), a identidade miscigenada do povo brasileiro possibilitaria um espaço de democracia racial.

Ainda que os movimentos transnacionais para o Brasil foram e são significativamente expressivos em termos socioculturais, principalmente no âmbito regional e local, os dados numéricos apontam para um fluxo inferior a países do mesmo continente. Como exemplos temos a Argentina com quase o dobro de imigrantes no mesmo período e os Estados Unidos com cinco vezes mais imigrantes, onde chegaram mais de vinte milhões entre 1870 e 1930 (Lesser, 2015: 32). Ainda hoje a representatividade dos imigrantes na sociedade brasileira é pequena, totalizando menos de 0,5% da população (IBGE, 2010). Entretanto, são dados numéricos que contextualizam apenas uma dimensão dos fluxos migratórios, desconsiderando-se as contribuições econômicas e socioculturais para os países de origem e destino.

A incorporação de imigrantes no território brasileiro teve o objetivo inicial de salvaguardar as fronteiras do novo território português. Naquele momento, populações pouco desejáveis na Europa, eram obrigadas a ocuparem fronteiras que separavam o Brasil das colônias espanholas, resultando na inclusão de alguns “povos indígenas, muitos colonos portugueses e seus descendentes e um número maior de escravos que trabalhavam na economia de grandes propriedades agrícolas” (Lesser, 2015: 35). Estima-se que entre 1550 e 1850, cerca de 4 milhões de africanos foram escravizados no Brasil (Barreto, 2015: 11). Da Matta (1987: 87) pondera que todo o jogo político português era centralizado e governado por meio de decretos e leis universalizantes onde a Coroa portuguesa mantinha um rígido sistema hierarquizado de poderes sociais com objetivos econômicos, sendo as atividades comerciais o motivo da arrancada colonizadora com o suporte cons­ciente da igreja católica pois “era na religião que Portugal encontrava a moldura através da qual podia justificar o seu movimento expansionista”.

No século XIX, o deslocamento marítimo era dispendioso e longo, e apenas migrantes abastados financeiramente ou com incentivo governamental podiam realizar tal viagem. Além disso, outros territórios “concorriam” para atrair novos habitantes, tal como os Estados Unidos, devido a uma maior proximidade geográfica e relação latitudinal similar à Europeia. A elite, formada pelo avanço da agricultura no país junto aos interesses de Portugal, procurava um novo movimento migratório a fim de substituir o fim e a proibição internacional do trabalho escravo. Contudo, “na Corte portuguesa, eram muitos os que entendiam que as pessoas que eles mais queriam como imigrantes eram as que, provavelmente, menos interesse teriam em vir” (Lesser, 2015: 37). Baseada na tríade conceitual: abastecimento, colonização (inclusive, o povoamento) e progresso, o imigrante desejado era o agricultor europeu, ocidental e branco, onde o fluxo escravocrata impossibilitava uma corrente migratória da África pois seria a recomposição indireta do tráfico de escravos (Seyferth, 2014).

O fato do fim da abolição constitui uma ameaça à estrutura hierarquizada econômica e socialmente no Brasil. Neste sentido, a fábula das três raças é útil como ideologia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios da sociedade brasileira, sem que se crie um plano para sua transformação profunda. Uma forma de pensar o país, integrando idealmente sua sociedade e individualizando a sua cultura (Da Matta, 1987). Desconsiderando, obviamente, todo processo migratório seletivo do colonizador português e, posteriormente, das elites instaladas no país.

Durante cem anos, até meados do século XX, o país foi polo de atuação dos imigrantes, principalmente europeus, mas também japoneses e árabes. A recepção de migrantes ocorreu especialmente entre 1819 e final da década de 1940. Estima-se que o país recebeu entre quatro e cinco milhões de migrantes, principalmente europeus, tais como italianos, portugueses, espanhóis e alemães. Outras nacionalidades africanas, orientais e árabes também estiveram presentes significativamente. Por causa da Segunda Guerra Mundial, esse processo foi interrompido e, quando a guerra acabou, houve uma retomada das migrações. Até meados dos anos 1960, o Brasil ainda recebia imigrantes (Cogo, Badet, 2013).

Nos anos 1980 e 1990, o país começou a receber uma migração muito diferente daquela que havia antes da Segunda Guerra Mundial, porque não era mais de europeus, e sim de sul-americanos, com destaque para os bolivianos, argentinos, paraguaios e peruanos (29% dos imigrantes no Brasil conforme relatório da OIM, 2017) e, posteriormente, os asiáticos, mas não mais os japoneses, e sim os chineses e sul-coreanos. Em menor número, também os africanos. Esse perfil se mantém até agora. A imigração de hoje é muito menor do ponto de vista quantitativo, representando, segundo o Atlas da Imigração (Baeninger et al., 2018), 700 mil habitantes.

Na última década, principalmente depois da crise econômica de 2008, o Brasil está recebendo novamente migrantes europeus, principalmente portugueses e espanhóis. Trata-se de uma migração completamente diferente da imigração de antes da Segunda Guerra Mundial, porque aquela era basicamente de agricultores e operários. A imigração recente é de profissionais liberais, funcionários de grandes empresas ou profissionais autônomos com uma qualificação completamente diferente. Por outro lado, recebe-se migrantes haitianos, mas é um grupo pequeno (entre 50 e 80 mil pessoas entre 2010 e 2014), comparado aos três principais grupos migratórios que chegaram ao Brasil no período entre 2007 e 2014 (Uebel, 2015), tais como Portugal, EUA e Japão, com mais de 600 mil pessoas. Também recebemos africanos, sul-americanos e asiáticos, sendo que alguns grupos começaram a chegar como refugiados.

O histórico dos diferentes fluxos migratórios ao Brasil a partir das diferentes políticas públicas, indicam um ideal de imigrante desejado e indesejado. Barreto (2015), em um estudo sobre a percepção dos migrantes transnacionais pela imprensa brasileira no período do início do século XIX até o ano de 2015, identifica essa diferenciação depreciativa na representação midiática das diferentes nacionalidades migratórias. Segundo o autor, diferentes expressões (refugiado, imigrante e estrangeiro) apresentam estratégias diferenciadas de representação do outro. O refugiado, sobretudo o negro, geralmente é visto como ameaça, algo negativo. Já o estrangeiro, leia-se branco, é considerado como superior ao próprio brasileiro. Não há estatísticas compiladas por órgão oficial brasileiro sobre o número e os casos de violência sofrido por migrantes, mas o próprio sistema midiático, que muitas vezes contribui com o tratamento depreciativo da migração transnacional, traz relatos de violência, preconceito e xenofobia (Santos, 2016). É bem verdade que muitos casos de violência refletem e obviamente não justificam o enquadramento estigmatizante do sistema midiático sobre alguns grupos migratórios. Barreto (2015) descreve a grande quantidade de reportagens sobre o guineense de 27 anos suspeito de estar infectado pelo vírus ebola no segundo semestre de 2014, gerando um temor de escala nacional. Segundo o autor, a reação violenta à suspeita pode ser explicada a partir de seus múltiplos marcadores culturais e sociais. A exposição da foto em toda a imprensa não deixa dúvidas: trata-se de um africano (pouco importa de qual nacionalidade), negro e portador de uma ameaça epidêmica. A narrativa é comum aos brasileiros, em termos históricos: desde os discursos na Academia Imperial de Medicina e no Museu Nacional até os tratados eugenistas adaptados à realidade brasileira, os imigrantes não brancos e, sobretudo os negros, são uma ameaça ao futuro do Brasil, anunciavam os principais intelectuais da época, principalmente pela sua capacidade de “degenerar” a sociedade com raças “inferiores” (Barreto, 2015: 514).

Atualmente, não existem disposições legais dando preferência a uma ou outra nacionalidade ou grupo étnico e, em muitos casos, a resistência à abertura refere-se mais a questões de reserva de mercado do que identitárias. Ainda assim, alguns estereótipos permanecem. A compreensão de que quem migra para o Brasil deve contribuir para o desenvolvimento nacional e, portanto, deve ser qualificado e não deve ser pobre faz ligação direta com os estereótipos muito presentes no Brasil de que negros e índios contribuíram para o subdesenvolvimento do Brasil, pois não seriam aptos ao trabalho, ao conhecimento e ao progresso como os europeus. Frente às políticas públicas ineficazes e restritivas, é possível observar o espraiamento das discriminações entre nacionalidades não desejadas nos veículos de comunicação.

As diferenças de tratamento entre os grupos migratórios transnacionais passam a ficar mais claras e criar ações de violência a partir do crescimento dos fluxos de migração nos últimos anos e em diferentes pontos do mundo. Alguns grupos passam a ter cobertura midiática extensa, evidenciando o contraste dos novos grupos de latino-americanos, africanos, haitianos e sírios com relação aos grupos migratórios relacionados a países com interesses econômicos. Também há um tratamento distinto, em termos midiáticos, para a imigração indocumentada a partir das fronteiras, ou seja, que se utiliza da ação de “coiotes”, termo utilizado para identificar o agente que conduz os imigrantes pelas áreas de fronteira mediante pagamento, e de atravessadores; o que é uma situação relativamente nova na história brasileira.

Campanha #eutambemsouimigrante

A campanha #Eutambemsouimigrante foi desenvolvida em duas etapas pelo Ministério da Justiça do Brasil, e veiculada em meios digitais. Uma primeira, lançada em agosto de 2015, teve como foco o refúgio, ao passo que a segunda etapa da campanha, desencadeada em outubro de 2015, esteve ancorada no combate ao ódio e à xenofobia, propondo a reconstituição e inserção da origem migratória de cada usuário, através do lema “Brasil: a imigração está no nosso sangue”.

Realizamos a análise do discurso dos materiais da campanha com base na proposta de Fairclough (2001), em três dimensões: a) problema social e aspectos do discurso; b) elementos discursivos do problema social (atores sociais, espacialidades e práticas sociais); e c) reflexão crítica com base na análise do discurso sobre o problema social.

Na análise da primeira dimensão, do problema social e suas relações com o discurso produzido, verificamos que o problema social enfocado pela campanha é o combate à xenofobia em relação à população migrante. Esse problema, no caso do Brasil, está inserido em um contexto do racismo histórico que incide sobre esse grupo e potencializa as atitudes de intolerância. Nesse contexto, o discurso de positivação da migração está presente na memória histórica e afetiva dos descendentes dos migrantes europeus, principalmente no contexto da cidade de São Paulo. O projeto do governo brasileiro dos séculos XIX e XX de branqueamento da população criou uma figura romântica do imigrante trabalhador e civilizado, que é resgatada nas histórias da campanha. Nesse discurso, apagam-se os conflitos que ocorreram na época e o estranhamento em relação a di­ferentes grupos europeus e asiáticos. Diante dessas tramas discursivas, o Minis­tério da Justiça lança a campanha #Eutambemsouimigrante, posicionando-se contra a intolerância, o preconceito e a xenofobia (Figura 2).

Por que os imigrantes que vivem na Europa tem sofrido com a xenofobia nas últimas décadas?

Figura 2.
Peça de comunicação da segunda fase da campanha do Ministério da Justiça sobre migrações, contra a xenofobia
Ministério da Justiça (2015).

Como elementos discursivos do problema social presentes na campanha, analisamos os atores sociais, as espacialidades e as práticas sociais. O principal ator de produção do discurso é o Ministério da Justiça do Brasil, responsável pelas questões relacionadas à imigração no país. Os sujeitos que são representados no discurso são migrantes contemporâneos de diferentes origens, e aqueles que interagem com suas ações nas redes sociais são descendentes de migrantes de diferentes gerações e origens.

As espacialidades utilizadas para a publicização da campanha foram contextos digitais, como website e os sites de redes sociais Facebook e Twitter. Os espaços digitais da campanha permitem a reprodução de discursos contra a intolerância em páginas institucionais (como o site e a página do Facebook do Ministério), e também em páginas pessoais de indivíduos que apoiaram a campanha e seu conteúdo. Com o objetivo de resgatar a identidade nacional a partir da origem migrante de cada brasileiro, mostrando as trajetórias dos indivíduos, a campanha é composta por oito peças que foram divulgadas no site do Ministério da Justiça no Facebook. Além das peças, o Ministério disponibilizou em seu hotsite (Figura 03) a possibilidade para os usuários montarem sua própria mensagem a partir de sua origem migrante e a compartilharem no Facebook. O Ministério também convidava todos os interessados para participar da campanha pelas redes sociais usando as hashtags #EuTambémSouImigrante e #XenofobiaNãoCombina.

Por que os imigrantes que vivem na Europa tem sofrido com a xenofobia nas últimas décadas?

Figura 03
Página do site www.eutambemsouimigrante.com.br
www.eutambemsouimigrante.com.br.

O texto proposto pela campanha remete a dois aspectos , o combate a atos de xenofobia e a presença da migração na história do país e de seus habitantes. O resgate histórico, relacionado à proximidade familiar de cada sujeito, é em geral um elemento de sensibilização para o problema da intolerância à imigração. No entanto, o conteúdo do texto não apaga as relações de preconceito raciais e sociais, principalmente contra negros e pobres, que existem no seio da sociedade brasileira. Ao relacionar a contribuição dos migrantes ao país, fala-se de um passado específico de alguns sujeitos, apagando elementos relevantes da história brasileira, como o processo de escravidão dos negros africanos, ou como a estrutura desigual de grandes proprietários e produtores em relação a trabalhadores em situação precária. Além disso, o passado distancia-se do presente em relação à origem dos fluxos de migração mais recentes, principalmente de países latino-americanos, com presença de diferentes raças e etnias, que não são a do “bom migrante” branco e europeu.

Em relação aos posts feitos pelo Ministério da Justiça na rede social Facebook (Figura 04), a memória e a história da origem e trajetória dos indivíduos migrantes também é foco discursivo, com figuras de origem europeia e asiática (conforme principais grupos que migraram para o país no final do século XIX, começo do século XX), assim como de origem africana (que remete aos escravos como migrantes).

Na terceira dimensão da análise, a de reflexão crítica com base na análise do discurso sobre o problema social, verificando os elementos discursivos dos posts feitos pelo Ministério no Facebook, destacamos primeiramente o apagamento das diferenças entre as origens diversas que são apresentadas (como portuguesa, espanhola, italiana, alemã, libanesa, sul-coreana, sul-africana, angolana e ganesa), como se para todos os grupos os acessos e as experiências fossem semelhantes. Outro aspecto é a relação familiar destacada, com ênfase para referências a ancestrais mais distantes (como avós e bisavós), o que distancia o discurso da realidade dos grupos migrantes mais recentes.

Ao apagar as diferenças entre os diferentes grupos migrantes, não há reflexão sobre diferentes processos durante a história brasileira. Inicialmente o próprio processo colonial, considerando que os portugueses, como ex-coloni­za­dores, continuaram escolhendo o Brasil como país de destino privilegiado, não encontrando barreiras para sua mobilidade. No caso de outros grupos europeus, como os espanhóis, italianos e alemães, eles se classificam no grupo selecionado pelas políticas brasileiras no final do século XIX e início do século XX, para branqueamento da população local e para ampliação da mão-de-obra produtiva, fator que resulta na conexão entre migração e trabalhadores, contribuintes para o crescimento do país. Já em relação a libaneses e sul-coreanos, eles estão classificados como grupos que receberam em momentos específicos a autorização para migrar para o Brasil, com um acordo entre os países (caso também da Síria e do Japão), o que também facilitou seu acesso ao país, não resultando, no entanto, somente em experiências positivas, o que pode ser percebido tanto em relação aos preconceitos raciais e étnicos em relação a essas regiões – sírios e libaneses são denominados de árabes em geral, e asiáticos normalmente são identificados como japoneses, como por terem sido o grupo de maior volume de migração ao Brasil. Por fim, em relação aos negros africanos, o fato de se colocar como semelhante a experiência de um sujeito que foi escravizado e trazido ao Brasil coercitivamente com a de um migrante que fugiu de seu país ou que escolheu o Brasil como destino é um apagamento de um processo histórico de graves consequências tanto para os países de origem quanto para a sociedade brasileira. Além disso, com essa ausência de crítica também se corrobora com uma visão de que vivemos no país uma democracia racial, sem preconceitos relacionados aos negros, elemento que distancia o discurso de diversas práticas presentes no cotidiano da sociedade brasileira.

Em relação à distância temporal, destacamos que os textos da campanha concentram referências à migração que ocorreu há mais de 50 anos, com grande destaque para os grupos que chegaram no fim do século XIX e começo do século XX, que são os avós e bisavós dos usuários que interagem com as postagens no Facebook. Grupos de latino-americanos, asiáticos, africanos e europeus que pertencem aos principais fluxos migratórios para o Brasil desde a década de 1980, não são destacados, e são os principais alvos dos atos de xenofobia e de intolerância contra os migrantes, que são o objeto da campanha em questão.

Repercussões à campanha #eutambemsouimigrante

Ao analisarmos os posts feitos por alguns usuários do Facebook, em comparação com o material da campanha do Ministério, há principalmente resgate de suas histórias familiares e sua descendência migrante, com os mesmos grupos priorizados pela campanha do Ministério. Assim, as mensagens produzidas e compartilhadas nesses posts são similares às da campanha (Figura 05).

Novamente, nos posts feitos por usuários do Facebook, os elementos discursivos são principalmente relacionados aos grupos mais tradicionais, com destaque para a inserção da origem indígena, assim como para os ancestrais mais distantes. Nesses textos, há uma mistura de histórias pessoais e familiares, com uma visão social sobre a questão da migração e a defesa da necessidade de combate à xenofobia.

Na dimensão de reflexão crítica com base na análise do discurso sobre o problema social, analisando esses textos, mesmo que seja a partir de elementos semelhantes aos da campanha, há maior espaço de conexão com a realidade vivida por migrantes atualmente, assim como uma perspectiva de engajamento na busca por soluções para esse problema que vive a sociedade brasileira. A relação com a história pessoal também cria uma conexão de emoção à questão, fato que incentiva o engajamento no compartilhamento do material da campanha e de textos com pensamentos e visões próprias.

É interessante notar que há uma aceitação significativa desse discurso por parte da população, vide as mensagens dos usuários do Facebook mostradas na figura 05. Nessas mensagens, além da promoção pessoal no uso da campanha em sites de rede social para ilustrar algum engajamento, podemos observar comentários de regozijo da construção familiar por diferentes nacionalidades estrangeiras, mas sem refletir sobre as distintas questões de trato social, político ou econômica que acobertam ou acobertaram seus familiares e os imigrantes de hoje.

Entretanto, não há na campanha qualquer sinalização de problematizar, em algum aspecto histórico, as relações sociais, político-econômicas entre Brasil e os diferentes grupos migratórios que por aqui passaram ou mantiveram permanência. Poderíamos, de forma hipotética, igualar o discurso discutido e rebatido por Da Matta (1987) sobre a fábula das três raças que constituem o povo brasileiro à campanha #eutambemsouimigrante. Ambos discursos trazem um olhar romântico dos fluxos migratórios e dos migrantes, o que em algum sentido propicia o estímulo à empatia, por outro acoberta todas as deficiências e mazelas, atuais e históricas, que diferentes e específicos grupos migratórios suportaram ou suportam cotidianamente.

A exemplo das mazelas existentes, no âmbito das três áreas (social, político e econômica), no período de divulgação da campanha em 2015, houve a tramitação da Lei de Imigração em substituição ao Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19/8/1980), legado do regime militar e vigente desde 1981, que estabelecia critérios restritivos aos migrantes, inspirando-se, sobretudo, no atendimento à segurança nacional, garantindo ao Estado a possibilidade de discriminar, punir ou ejetar, de distintas formas, qualquer estrangeiro que o Poder Executivo considerar como uma ameaça. Além de arbitrária, a lei de 1980 era obsoleta, incompatível com o rol de direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988 e com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. O Estatuto do Estrangeiro também não respondia às necessidades econômicas dos imigrantes e do país.

Sancionada em 24 de maio de 2017, mas com vetos do então presidente da República, Michel Temer, a nova Lei de Imigração (Lei nº 13.445) traz avanços, principalmente em não reconhecer o migrante como ameaça à sociedade, mas ainda não atende às diferentes organizações da sociedade civil engajadas na questão migratória. Dentre os vetos definidos pelo presidente, há questões contrárias à Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma vez que não prevê a livre circulação de povos indígenas entre fronteiras em terras tradicionalmente ocupadas por eles, em referência ao artigo nº 13. Também foi vetada a anistia para imigrantes que ingressaram no Brasil sem documentos até a data de 05/07/2016, bem como o direito ao imigrante em exercer cargo, emprego ou função pública.

Ademais dos vetos presidenciais, a regulamentação da própria Lei, divulgada apenas na promulgação oficial da Lei de Imigração em 21/11/2017, trouxe ainda mais incertezas nas políticas migratórias, uma vez que regulamenta o que não estava previsto na Lei e institui novas normas que desfavorecem os direitos dos migrantes. Dentre os exemplos de problemas da distorção da Lei pela sua regulamentação no ato de sua vigência, há questões sobre a dificuldade de autoridades adaptarem seus sistemas para a nova Lei, prejudicando vistos de trabalho, e sobre a inclusão pejorativa e estigmatizante de termos como a expressão “migrante clandestino”, o que demonstra disparidade entre campanhas de conscientização e divulgação de direitos realizadas pelo governo e seus próprios atos executivos.

Diante desse contexto, a partir da campanha do governo federal se desenvolve um espaço para uma repercussão crítica em relação ao material veiculado, por parte do público, contrário sobretudo à romantização e uniformização dos movimentos migratórios, ou seja, um discurso que ignora a seletividade e a diferenciação de tratamento presente na história e no dia-a-dia dos imigrantes. O debate se inicia a partir das postagens do próprio Ministério da Justiça no Facebook, mas se amplia para páginas online de veículos da imprensa (Propmark, 2015).

Na postagem do Ministério da Justiça no Facebook (figura 06), a foto do garoto negro Matheus Gomes de 18 anos apresenta mais de 3 mil comentários diferentes entre apoio, crítica e reflexão ao material divulgado. A mensagem, composta pela imagem fotográfica de Gomes realizada em estúdio fotográfico com cuidados de direcionamento (pose, iluminação, maquiagem e vestimenta), traz a descendência angolana e ganesa do jovem e o comunicado da campanha, de apoio: BRASIL. A IMIGRAÇÃO ESTÁ NO NOSSO SANGUE. Essa associação de imagem alegre do retratado (assim como em todas as outras imagens da campanha, onde os retratados estão sorrindo) com a identificação da descendência do jovem e o texto de apoio da campanha, propiciou muitas críticas à postagem (figura 07), principalmente por desconsiderar a bagagem histórica e simbólica da escravidão no Brasil, uma das mais longevas do mundo. Em uma das postagens, o usuário rebate a mensagem da campanha e a própria resposta do Ministério da Justiça com o texto: “Amigos mas imigrantes é totalmente diferente de ESCRAVOS! Não tentem colocar negros como imigrantes no geral [...] Vocês acham que interpretariam como? Um negro na foto, dizendo que é imigrante, vcs [sic] acha que as pessoas ainda vivem no mundo que a nossa história era escondida?”. Tal assertiva evidencia um descompasso tanto da mensagem da campanha quanto às respostas oferecidas aos usuários em nome do Ministério da Justiça. Inclusive, nas diferentes críticas dos usuários à campanha, encontramos a mesma mensagem replicada seguidamente (Figura 08), indicando de certo modo um desrespeito aos usuários e um distanciamento ao debate. Em outras postagens dos usuários, a exemplo dos textos de Lorena Junqueira e Twylla Ferraz, respectivamente (Figura 06): “Combater o racismo passa por reconhecer essa luta povo africano [sic], pelo passado violento que eles vivenciaram e pela luta secular por espaço na sociedade”; “E o que estão fazendo efetivamente para acabar com a xenofobia? [...] Que providência estão sendo tomadas contra os ataques que eles sofreram/sofrem?”, é possível perceber pontuações além das críticas à mensagem da campanha, com inferências propositivas à campanha e ao debate entre as questões de xenofobia, racismo e historicidade. Entretanto, no decorrer dos diferentes comentários dos usuários quanto à campanha, seja com críticas, apoios ou asserções ao debate, não constatamos postagem em nome do Ministério da Justiça diferente à nota oficial (Figura 08).

Muitos usuários apontam que a campanha do governo federal busca ignorar diferenças raciais ou minimizar a carga simbólica dos milhares de cativos africanos trazidos ao país, ainda, evidentemente, que esse não seja o objetivo, como aponta a nota do Ministério da Justiça (Figura 08). Ignora-se o fato ao romantizar os fluxos migratórios ou ao acobertar as consequências das diferentes políticas de migração, acentuadamente nos africanos escravizados.

Este discursoda campanha nos remete à questão da democracia racial e à fábula das três raças, onde toda restrição de direitos de negros e índios é relativizada ao se justificar a sua importância na complementaridade aos brancos para a construção do povo brasileiro. Essa importância, contudo, ignora toda construção histórica de restrição de direitos que culmina na baixa representatividade nos cargos políticos e executivos de trabalho, por exemplo.

Por que os imigrantes que vivem na Europa tem sofrido com a xenofobia nas últimas décadas?

Figura 07.
Repercussão da campanha na página do Ministério da Justiça no Facebook
https://www.facebook.com/JusticaGovBr/photos/pb.262699747205943.-2207520000.14­44919230./ 642609782548269/?type=3&theater.

Na nota explicativa do Ministério da Justiça em resposta a algumas mensagens críticas (Figura 08), houve apenas uma justificativa de “boa intenção” da campanha e um lamento que o material tenha gerado interpretações feitas por alguns usuários na associação entre a escravidão e a imigração. No entendimento do Ministério da Justiça, segundo podemos desprender da nota explicativa, tais elementos da mensagem da campanha não fazem alusão às particularidades de vida de cada leitor ou não são dialógicas aos problemas que os imigrantes e seus descendentes enfrentam ou enfrentaram.

A agência de notícias especializada na questão étnico-racial brasileira, a Afropress (www.afropress.com), trouxe parte da repercussão da campanha em seu website, onde um dos entrevistados, Reginaldo Bispo, do Movimento Negro Unificado (MNU), rebateu as justificativas apresentadas pelo Ministério da Justiça. Para Bispo, a campanha é “uma manipulação histórica, falsa, desonesta, rasteira e criminosa. Isso não pode ser deslize, é contextual, ideológico e uma fraude criminosa. Não sou imigrante, meus avós foram escravizados. Quero meus direitos, minha reparação histórica” (Afropress, 2015).

Na postagem do Ministério da Justiça no Facebook (Figura 09), foi feito um comentário por um usuário, com o texto: “imigrantes pacíficos são bem-vindos, já os jihadistas devem ser bloqueados de entrar no Brasil”. Jihad, segundo Cook (2005), é um termo árabe que originalmente significa “luta” ou “em­penho” em disseminar a fé, mas passou a ser usado por radicais islâmicos co­mo convocação para a “guerra santa” — os que atendem a esse chamado e usam da violência são chamados de jihadistas. O termo também é frequentemente relacionado a terroristas e estrangeiros, geralmente associados especificamente a indivíduos originários de países onde há maioria de muçulmanos. Esse discurso de conexão entre migrantes e terroristas tem sido utilizado como um dos argumentos daqueles que são contrários às migrações internacionalmente, sendo incluído em decisões políticas mais recentes, como é o caso de decisões de bloqueio de acesso a indivíduos de países muçulmanos feitas pelo presidente Donald Trump em 2017 (Portal G1, 2017). Tal discurso é encontrado nessa interação com esse post, apesar de não ser uma questão vivida diretamente no Brasil.

Como resposta ao comentário (Figura 10), o moderador da página do Facebook do Ministério escreveu: “os jihadistas, assim como qualquer povo de qualquer outra origem, vêm ao Brasil para trazer mais progresso ao nosso país e merecem respeito”. Apesar de ter buscado responder em relação às atitudes dos brasileiros com diversos povos, a resposta mantém o erro do comentário, ao considerar que os jihadistas são um povo, e de alguma forma repetindo também um termo generalista e preconceituoso.

A página no Facebook “Lei Islâmica em Ação” faz uma postagem sobre esses comentários com o seguinte texto: “Será que alguém pode esperar que vá existir qualquer tipo de fiscalização de quem entra no Brasil se declarando ser refugiado se o próprio Ministério da Justiça acha que jihadistas são um “povo” que “traz progresso” e “merece respeito”?”. Nos comentários dessa postagem as pessoas comentam a ignorância sobre o Jihad e o erro grosseiro cometido ao considerar jihadista como um povo. O fato de ser uma mensagem oficial do Ministério também é criticado, uma vez que deveria haver maior cuidado e conhecimento pela estrutura oficial do governo. Além disso, também é comentada a falta de cuidado do conteúdo da campanha, uma vez que seu objetivo é exatamente trazer mais informações sobre estrangeiros e eliminar estereótipos. No caso, o grupo religioso jihadista é considerado como representante de todos os muçulmanos ou dos indivíduos que têm como origem os países do Oriente Médio, elemento de generalização e discurso que é muitas vezes reproduzido na mídia.

A empresa terceirizada que moderava comentários na página do Ministério da Justiça no Facebook foi afastada após esse incidente em novembro de 2015 (Vasconcelos, 2015). Em seguida, o Ministério da Justiça reconheceu o erro de apontar os jihadistas como um povo: “Olá, Rodrigo. O Ministério da Justiça lamenta o erro cometido na resposta na qual confunde jihadistas com um povo. O erro crasso foi corrigido”.

Após essas repercussões, mesmo que o Ministério tenha afirmado que não tiraria a campanha do ar, ela foi retirada de veiculação no início de 2016. Após esse período e até o presente momento (início de 2018), não foi realizada nova campanha com essa temática, mesmo que a questão da xenofobia continue sendo um desafio enfrentado por migrantes que vivem no Brasil.

Considerações finais

A partir da análise do contexto dos discursos relacionados à formação da campanha do Ministério da Justiça #Eutambemsouimigrante, tanto de textos que foram produzidos em sua divulgação quanto de algumas das reações que motivaram a retirada de veiculação, pudemos verificar: a) os desafios em relação aos discursos relacionados às migrações internacionais no Brasil, principalmente relacionadas às questões de racismo e de desigualdade social no país; b) a reprodução de determinados mitos – como uma visão idealizada de bons migrantes, geralmente europeus e brancos que contribuiriam para o crescimento econômico do país, também presente em outra campanha pró-migração (Cogo e Riegel, 2016), e da conexão dos outros grupos com ameaças, como crimes, desemprego e precarização do bem-estar social; c) o questionamento sobre a intolerância e a xenofobia existentes no país, em relação à inclusão dos migrantes, promovida por pessoas ou por instituições responsáveis pela questão no país. A produção da campanha mantém determinados estereótipos positivos e negativos sobre os migrantes, tanto nacionalmente quanto internacionalmente reproduzidos.

A campanha buscou dar visibilidade para alguns grupos de migrantes, mas manteve o apagamento de outros, fato que dificulta o combate ao estranhamento de grupos, principalmente nos casos dos latino-americanos e negros, o que reproduz a ideia de que somente há aceitação de determinados perfis ou tipos de fluxos migratórios no país. Essa falta de discussão sobre os diversos e específicos fluxos - como migrantes econômicos, de trabalho, refugiados (humanitários, ambientais, políticos), investidores, tanto de natureza permanente ou provisória – mantém estereótipos sobre o fenômeno da migração e sobre determinados grupos, resultando também na manutenção de pensamentos e atos xenófobos. Assim, o problema social focado pela campanha, de combate à xenofobia em relação à população migrante, não é discutido e combatido de maneira mais efetiva, principalmente em relação à questão mais crítica do racismo histórico presente no país.

A questão da raça, conforme aponta Lesser (2015), é um elemento crítico na sociedade brasileira e possui impacto direto sobre as interações e representações dos migrantes no país, sendo que essa foi igualmente uma das questões de repercussão mais negativa à campanha analisada, quando houve apagamento da discussão sobre a escravidão africana brasileira.

Corroborando com os achados do estudo de Barreto (2015), a análise da campanha do Ministério igualmente mostra que as percepções dos migrantes transnacionais possuem uma diferenciação depreciativa, com formas de representação diferenciadas das diferentes nacionalidades migratórias. Assim, europeus, brancos, mais especificamente aqueles que chegaram no Brasil há pelo menos 50 anos, são considerados bons migrantes e a relação com sua imagem é positivada, invocando os afetos dos indivíduos que descendem desses sujeitos. Mesmo que muitos desses sujeitos tenham migrado para o país por motivos econômicos, eles não são conectados ao discurso de ameaça à economia nacional e ao seu crescimento. Em contrapartida, latinoamericanos e africanos, pardos, indígenas ou negros, são indesejados, considerados um ônus para os serviços sociais do país, uma ameaça para os empregos ocupados por nacionais, e potencialmente criminosos.

Discursos que relacionam o fenômeno da migração com o aumento do desemprego, de crimes e da precarização do bem-estar social, não são diretamente discutidos pela campanha. O foco histórico e afetivo da descendência apagam essas questões, que criam intolerância em relação aos migrantes. Assim como esses elementos, o tema do terrorismo também surge na discussão da campanha – na confusão equivocada dos jihadistas como um povo – o que demonstra também a influência dos discursos internacionais relacionados à migração presentes no Brasil.

A partir do contexto social brasileiro onde os atos de xenofobia contra migrantes ocorrem, a produção dessa campanha pelo Ministério da Justiça, das repercussões de identificação por determinados grupos e de crítica por outros, verifica-se a necessidade de ampliação da discussão sobre o mito do Brasil hospitaleiro e de sua realidade em relação à aceitação e à convivência com a migração, em suas diferentes naturezas e origens.

Por que imigrantes que vivem na Europa tem sofrido com a xenofobia nas últimas décadas?

O aumento dessas migrações internacionais estão geralmente ligadas a fatores de repulsão e de atração. Os primeiros são aqueles que contribuem para a saída rápida do migrante, seja por razões econômicas, por falta de recursos naturais, por crises humanitárias ou ocorrências de guerras ou guerrilhas.

Qual a relação da presença dos imigrantes na Europa com a xenofobia?

Para muitos europeus a xenofobia está associada ao raciocínio simplista que relaciona o desemprego acentuado na Europa das últimas décadas à presença do estrangeiro. Alega-se, em alguns países da Europa, que muitos empregos foram tomados por grupos de origem imigrante em detrimento de verdadeiros europeus.

Quais são os principais problemas enfrentados pelos imigrantes no continente europeu?

A Discriminação da mulher no trabalho, como ocorre a discriminação da mulher no trabalho, onde ocorre com maior freqüência a discriminação da mulher e no trabalho, a discriminação da mulher no trabalho, menores salários para as mulheres.

Porque os europeus não gostam de imigrantes?

Crise migratória na Europa Esses refugiados estão fugindo de seus países devido a diversos fatores como guerra e violência, fome, todos os tipos de intolerância. Com esse fluxo de pessoas tentando chegar na Europa de maneira irregular e não convencional, desencadeou uma crise.