Porque as fronteiras artificiais da África causam tantos conflitos?

Abordagem teórico-conceptual sobre fronteiras

Uma contextualização e enquadramento teórico sobre o estabelecimento das fronteiras de Angola, o caso da fronteira Angola-Namíbia, encerram, para além da compreensão antropológica (por tratar-se de Estados políticos habitados pelos mesmos grupos etnolinguísticos) um necessário entendimento sócio-histórico que corporiza a influência da expansão europeia na divisão desses povos.

A abordagem da questão sobre as fronteiras, enquanto entidades jurídico-formais e “[…] realidade política que se impõe às relações entre nações e povos com os territórios”, segundo Ferreira (2009, p. 381), constitui uma questão tardia em relação ao surgimento das primeiras comunidades humanas.

A questão é ainda mais tardia no contexto das realidades africanas. Porém, enquanto “metáfora para a interpretação dos processos de definição de identidades sociais” (Ferreira, 2009, p. 382), as fronteiras coexistem com a mobilidade e o estabelecimento humano à face da terra. Por este motivo, a definição do termo fronteira acarreta o “risco de se incorrer em uma série de inexatidões, cerceamentos semânticos ou equívocos” (AUGUSTONI E VIANA, 2010, p. 190), razão pela qual importa discernir as perspetivas conceituais formais e factuais.

Quando os autores evocam riscos e eventuais equívocos interpretativos, sugerem revisitar as origens etimológicas, bem como a dimensão polissémica que o termo fronteira recobre. Augustoni e Viana (2010, p. 190) referem a evolução do étimo desde o desde o século XIII, da palavra francesa “frontier”, no sentido de vanguarda às tropas que mais tarde, cerca do século XIV, viria a designar os limites de um território ou de um Estado “que se situa ou vive nos limites de uma extensão, de uma região etc., que tem limites comuns.”

Em seu artigo A vida longa das linhas Retas: Cinco Mitos sobre as Fronteiras na África, Döpcke (1999, p. 77) defende que uma fronteira constitui, a “divisão internacional que delimita o território sobre o qual um Estado com status e papel internacional exerce soberania e jurisdição”.

Nos últimos anos, conforme Lamont e Molnár (2002, p. 167), a ideia de “fronteira” tem sido objeto de pesquisa histórica e sociológica criando novas linhas de investigação que se cruzam com outras ciências sociais, levantando, na ótica de Augustoni e Viana (2010), questões como onde começa e termina a fronteira ou em que ponto o espaço – linha de demarcação – passa a pertencer a uma ou a outra região (município, província, país). Quando Ferreira (2009, p. 378) referencia que a “ideia fronteira é ativada na construção de mecanismos políticos de exclusão e de legitimação”, leva-nos a depreender que o conceito de fronteira está intimamente ligado ao exercício do poder de Estado, subsumindo assim as dimensões política, sociológica, e até mesmo jurídica que se configuram nas sociedades contemporâneas.

A fronteira constitui “espaço ténue entre dois lugares” (AUGUSTONI E VIANA, 2010, p. 191), em cujo interior se torna legítimo o exercício de soberania e do direito de gestão dos recursos naturais circunscritos.

A consideração espacial de fronteira, segundo Lapradelle (1928) compreende a ideia de fronteira-zona e de fronteira-linha, a que os sociólogos recorreram para a reconstrução da atual concepção do termo. O autor rebate ainda a ideia de fronteira geográfica como sendo do segundo grau, em contraposição com a ideia de fronteira política, que considerou do terceiro grau, entendida como delimitação geográfica natural e vegetal do território em contraste com o seu aproveitamento político.

A fronteira é, na abordagem de Friedrich Ratzel (1889) apud Oliveira (2010, p. 13), “um local de relação entre dois Estados, uma área de constante contacto, uma região periférica que reúne características dos Estados que a compõe”. Essa abordagem, de pendor instrumental, apresenta a dimensão geográfica e física sem inferir mais diretamente a relação entre os povos, os quais passam a ser condicionados por essa região enquanto limite político sujeito a regras de defesa e segurança de cada Estado. Por este motivo, Oliveira considera que,

[…] fronteiras bem definidas, determinadas com clareza e implantadas com o necessário rigor técnico no terreno, são a principal garantia para assegurar eficazmente dentro da atual ordem internacional, a preservação do espaço territorial. (OLIVEIRA, 2010, p. 9)

O rigor técnico e a preservação eficaz da ordem internacional a que o autor faz menção refletem uma perspetiva determinista, com a necessidade de circunscrever os recursos a explorar, inibindo a partilha arbitrária dos mesmos dentro dos limites estabelecidos.

A evolução histórica da noção de fronteira vincula-se a teorias produzidas por geógrafos e políticos que, associando a sua continuidade/descontinuidade a determinados componentes naturais, enveredaram pela construção artificial, recorrendo às demarcações dadas pelas “linhas sobre rios” (LAMONT E MOLNÁR, 2002, p. 167), elevações, falésias. Esta aferição permite concordar com Lamont&Molnár (2002) quando referenciam que fronteira implica não só o reconhecimento mas também o respeito por todos os outros Estados, contíguos ou não. Assim, propõe uma divisão em fronteiras naturais, aferidas por limites hidrográficos, orográficos ou marítimos, e fronteiras convencionadas, artificiais – deduzíveis em teorias matemáticas, no caso de latitudes e longitudes.

A asserção de Oliveira (1999, p. 9) em como a fronteira superou a ideia de “uma zona de separação inculta e deserta entre regiões habitadas e habitáveis” e passa a considerar-se como “uma zona de contacto e de relações de contiguidade entre Estados”, pressupõe o recurso à formalização das identidades dos regimes de Estado e respetivos governos. É necessário regular as “relações entre dois Estados dentro de um território misto, resultante de reunião de suas zonas periféricas territoriais respetivas”.

Tendo em conta estas diversas perspetivas, entende-se por fronteira um marco convencional que tem por fim estabelecer/definir espaços geográficos onde são reconhecidos o direito à soberania política e à integridade territorial de um Estado, ao qual cabe a gestão dos recursos contidos no seu território, circunscritos por marcos intencionalmente convencionados.

O facto de a análise de fronteiras subsumir simultaneamente o domínio sociológico e jurídico (OLIVEIRA, p. 2010), complexifica a sua compreensão, por envolver as aspirações sociais e históricas dos povos, mas também as lógicas de poder de Estados. Esta complexidade potencia conflituosidades na assunção e legislação de fronteiras, pela existência de desconformidades entre o domínio sociológico e o jurídico, com a sobreposição de poderes dos Estados sobre as aspirações, interesses e identidades históricas dos povos.

O poder de definir os espaços fronteiras, enquanto uma “ferramenta teórica que delimita uma região concreta” (FERREIRA, 2009, p. 383), raramente é conforme com a praticidade e a identidade precedente dos grupos humanos neles contidos, e que podem ou não estar circunscritos a esses espaços. Nem sempre os poderes de Estado convergem com aquelas dimensões sociológicas que se pretendem sejam configuradas num mesmo “espaço das políticas e dos processos” (FERREIRA, 2009, p. 383), independentemente de tratar-se do colonialismo ou de outras formas.

As fronteiras pré-coloniais africanas

O designado período pré-colonial é um objeto de difícil estudo, fruto da sujeição a constantes reestruturações aliadas à historicidade das sociedades da época e, sobretudo, à escassez de dados.

A carência de fontes escritas relativas a determinados períodos e a destruição, pela ação dos homens ou do tempo, de vestígios materiais que poderiam confirmar os factos em África, não podem, contudo, justificar a ausência de uma História efetiva do continente.

A estruturação, organização e funcionamento dos Estados pré-coloniais em África exigiu o estabelecimento de fronteiras, embora com características particulares. Esta necessidade é mais premente entre as sociedades sedentárias, que desenvolveram estruturas políticas e físicas e economias estáveis (pratica da agricultura, artes e ofícios). Entre as populações nômades, os limites eram mais determinados pela circunscrição étnica e o direito consuetudinário encarregava-se de proteger e reconhecer a flexibilidade dos seus limites externos.

Para Pinto (2007), a África pré-colonial constituía um território parcamente habitado, de baixa densidade populacional e com recursos naturais explorados à medida das necessidades reais dos Estados, em que a autoridade central de governo estava predestinada a regular grupos circunscritos dentro de um espaço territorial. Por este motivo, a concepção de uma fronteira fixa e definitiva dificilmente se afirmava porque o poder não era baseado no controle de um espaço territorial permanente, e a natureza da autoridade baseava-se na regulação social dos humanos, independentemente dos limites espaciais (HERBST, 2000). Como consequência, a mobilidade das populações não era intencionalmente restringida, dependendo fundamentalmente da disposição dos recursos para a sobrevivência. Esta caracterização permite aferir que os conflitos da época não eram diretamente subjacentes à disputa territorial mas decorrentes do acesso aos recursos.

O contexto em que os africanos viviam e a forma como governavam os seus territórios até à chegada dos europeus e à institucionalização do colonialismo, sem fronteiras fixas e com soberanias tendencialmente partilhadas devido às facilidades de mobilidade das pessoas, representou para os europeus uma dificuldade objetiva durante a divisão do Continente.

A compreensão dos processos que levavam à definição dos limites fronteiriços dos Estados africanos implica uma análise apurada sobre a gestão de espaços, a lógica do estabelecimento dos povos e as dinâmicas de gestão dos recursos disponíveis que implicava necessariamente a mobilidade das populações em decorrência das necessidades equilibradas com a tecnologia disponível.

A noção de fronteira pensada em termos de capacidade, competência e legitimidade para o exercício do poder é uma aquisição recente para os africanos: em África, a soberania era exercida sobre as populações, não tanto sobre os territórios.

Na perspetiva de Ferreira (2014, p. 56), para os africanos, o “espaço político viajava com as pessoas” e essas “unidades políticas reconstituíam-se ou desapareciam” e sobreviviam à presença de um chefe que personificava o poder, não sendo por isso “sociedades acéfalas.”

Durante muito tempo, os movimentos migratórios africanos eram facilitados pela abundância de terras para a atividade agrícola, e motivados por disputas internas por um mesmo território, ou ainda por dissidências por parte da população que não se revia nas novas soberanias. Pinto (2007, p. 216) considera que, “era mais fácil abandonar o local em disputa do que criar laços de identidade com a região”, sob pena de incorporar-se numa identidade étnica distinta, na qual até a própria comunicação podia ser dificultada.

O facto de os Estados pré-coloniais africanos não estarem necessariamente identificados com um espaço territorial demarcado com fronteiras fixadas por acordos jurídicos, fá-los unidades culturais compostas (língua e práticas culturais análogas), contrariamente a entidades políticas. Na ótica de Döpcke (1999, p. 125), a unidade estatal decorrente de migrações que ocupam e se estabelecem em novos territórios permite apreender que “o bem escasso não era a terra mas o homem”, o qual constituía o começo e o fim do território que compreendia um determinado Estado.

Apoiando o argumento em Oliveira (2002), entende-se aqui que a imprecisão das fronteiras africanas pré-coloniais, a sua inconstância e leveza em termos de limites e configurações, caracterizou as sociedades africanas. Segundo Lousada,

[...] na África pré-colonial as fronteiras constituíam-se em […] limites não mensuráveis [que] encerravam, desde tempos ancestrais, uma função de demarcação ou repulsa, contendo uma tangibilidade limitadora do sentimento de posse de comunidades em áreas de controvérsia, principalmente quando se pretendia uma coexistência pacífica Os limites consideravam-se imensuráveis devido à mobilidade decorrente da necessidade de aceder aos recursos para a sobrevivência. Quando os recursos escasseavam numa determinada circunscrição territorial, os grupos afectados procuravam expandir-se para outros territórios. (LOUSADA, 2010b, p. 124)

Os soberanos e os povos reconheciam, de acordo com Amaral (1997), os limites de seus territórios e de outrem, mesmo que não tivessem demarcações físicas identificáveis (uma árvore, um rio ou uma montanha) e sem guarnições do tipo militar que fizessem vincar a sua soberania. Apesar desta aparência, tendencialmente rústica, a primeira percepção pode ser considerada aparentemente insignificante, mas na prática impunham respeito porque constituíam a razoabilidade dos limites. Lousada, (2010b, p. 124) refere que soberania não era exercida num território com delimitações “definitivas”, porém era reconhecida por outras entidades ao seu nível. Para os africanos, as fronteiras do período pré-colonial tinham a função de “defesa ou expansão” do seu “campo”.

O fato de os africanos não adotarem as mesmas lógicas filosóficas, geográficas e políticas decorre, essencialmente, da realidade sócio-produtiva da época, caracterizada por comunidades de agricultores e de caçadores, cuja tecnologia e organização comunitarista de produção eximia a ideia de território configurado por limites físicos. A este respeito Abílio Lousada (2010b, p. 124) descreve que as fronteiras africanas sempre se adequaram às “formas de organização política e social dos seus povos”, enquanto Zartman (1965) assinala que a cultura milenar das sociedades tradicionais africanas, no quadro de vínculo à terra, não conhecia a demarcação de fronteiras.

No entanto, Oliveira (2005) chama a atenção para uma eventual negação em relação à África pré-colonial quanto ao conhecimento e respeito de limites fronteiriços dos seus espaços. África e os africanos conheciam um ordenamento social e jurídico diferente dos ocidentais, constituído por uma série de fatores que permitem inferir que, “possuíam um certo conhecimento e prática de fronteiras, estes revelavam-se vagos, flutuantes e raramente delimitados […] ou insuficiência de meios de administração” (OLIVEIRA, 2005, p. 41).

A dimensão da flutuação dos limites fronteiriços evocada pelo autor tem a ver com as práticas produtivas dominantes, a pastorícia e recoleção (caça e pesca). A ocupação ia ao encontro dos recursos naturais e as populações estabeleciam-se territorialmente de acordo com a abundância de terras e água num determinado espaço. Assim, a administração e ocupação do espaço era determinada pelo nomadismo, movimento necessário à medida que os recursos escasseavam, tornando assim as fronteiras objetivamente flexíveis. Deste modo, na África pré-colonial, as fronteiras culturais e linguísticas sempre foram bastante ténues e de difícil delimitação, sendo por tal designadas por fronteiras étnicas, num quadro de interdependência com atividades produtivas predominantes em cada grupo étnico específico.

As fronteiras e a Conferência de Berlim, que relação?

A coexistência das potências colonizadoras – França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica e Portugal – num território potencialmente rico, face a divergências de interesses e de diferentes níveis económicos, implicou dirimir litígios de ordem territorial. Esta situação levou à convocação da Conferência Internacional de Berlim (1884-1885) cujo foco era, hipoteticamente, encontrar mecanismos de coabitação. Na prática, redundou na reconfiguração das fronteiras do continente, sem o envolvimento dos nativos. A exploração de África passou a ser justificada, ideologicamente, como um processo visando ordenar o espaço e os grupos que nele viviam, incluindo até mesmo a organização do trabalho, no qual os nativos deveriam servir de mão-de-obra para os imigrantes (PAULA, 2016, p. 187).

Será no Ato de Berlim que 15 Estados imperiais (14 europeus e os Estados Unidos da América), corolário dos interesses coloniais das potências mundiais, irão redefinir a geografia do continente, sem a participação de um único africano. Sob a proposta de Portugal, que se via ferido no seu pseudodireito histórico sobre os territórios africanos, a Conferência foi organizada pelo Chanceler Alemão Otto von Bismark, representando um espectro claro de expansão imperialista sob a alegação de resolver os conflitos territoriais suscitados pelas atividades europeias na região do Congo.

Embora se considere que a Conferência de Berlim se encontra entre os eventos históricos mais bem explanados, as múltiplas perspetivas atribuídas à sua finalidade, objetivos e significado para o continente africano e para os Estados europeus sugerem uma revisão semântica dos conceitos ‘Partilha da África’ e ‘Fronteiras africanas’.

Na sequência e convocando M’Bokolo (2007, p. 85) pode demonstrar-se que a maioria das fronteiras “entre os futuros territórios coloniais foram estabelecidas consensualmente em acordos bilaterais após a Conferência de Berlim”. Diferentes acordos delimitaram o percurso fronteiriço entre as chamadas esferas de influência, seguidos por tratados que estipulavam os marcos exatos da fronteira, mesmo que, em muitos setores, o trabalho de demarcação não tenha sido realizado.

Ao referir-se aos factos subjacentes a este evento e debruçado ao documento 57, M’Bokolo entende que a partilha de África,“foi incorrectamente atribuída à Conferência de Berlim; o mito permanece tenaz, apesar dos esforços dos historiadores para restituírem o sentido do evento e definir os mecanismos do encadeamento de factos posteriores.” (M’BOKOLO, 2007, p. 311)

Na sequência, Carvalho (2005), em seu livro Compreender África, Teorias Práticas de Gestão, aborda com certa veemência essa ideia nos seguintes termos,

Não é a Conferência de Berlim que desenha o mapa da divisão de África, ela apenas põe em marcha o dispositivo que vai obrigar cada Estado europeu com posições em África a levar tão longe quanto puder (e quanto os outros o deixarem) a sua área de influência. (CARVALHO, 2005, p. 41)

A análise da bibliografia mais recente e a avaliação dos vários critérios historiográficos permitem-nos afirmar que não estava inscrita nos objetivos da Conferência de Berlim a partilha de África. Este processo decorreu em defesa de um princípio de “ocupação efetiva” que muitos historiadores consideram limitado à costa africana, que adquiriu importância e serviu de estímulo às potências colonizadoras durante a partilha do interior do continente.

Na visão de Correia (2010), a Conferência de Berlim não dividiu o continente, porém, criou os condicionalismos para a partilha de África, traçando fronteiras arbitrárias,

[…] ao abrigo dos interesses de potências estranhas, sem respeito pelos interesses e realidades políticas, humanas e sociais dos povos radicados, muitas vezes dividindo conjuntos políticos, étnicos e mesmo familiares, no sentido sociológico africano da família alargada, da tribo. (CORREIA, 2010, p. 307)

Analisando em particular os resultados da Conferência de Berlim, M’Bokolo (2007) argumenta:

Se é certo que se afastou a partilha imediata, é também claro que todos nela pensavam. A corrida para África tomou um novo aspecto logo após a Conferência de Berlim. Assumiu duas formas principais: competição, conflitos e entendimentos entre as grandes potências; multiplicação dos tratados com os chefes africanos”. (M’BOKOLO, 2007, p. 314)

Em definitivo pode ler-se em Correia (2010) que as fronteiras dos Estados africanos contemporâneos constituem uma herança de um processo antagônico de per se, logo de ténue consensualidade entre os próprios africanos, mesmo à luz dos determinismos legislativos. Trata-se de um prolongamento da ação colonial na sua perspetiva imperialista, com o estabelecimento de regras fixas e consensuais entre os partilhadores sem qualquer contributo ou reflexão do partilhado.

O pensamento dominante de Berlim levou, também a que África, sua ocupação, fosse sujeita a “ajustamentos, negociações e arbitragens entre as potências coloniais, de acordo com as regras aí estabelecidas. (CORREIA, 2010, p. 307)

A ocupação colonial em África e a obtenção do maior espaço físico/geográfico possível mediante a colocação de marcos fronteiriços, como mecanismo de dominação dos nativos, encontrava no estabelecimento de alianças a legitimação internacional para uma ocupação efetiva.

De qualquer modo, as atuais fronteiras africanas, particularmente as angolanas, são sobretudo porosas e fluidas. Há áreas sociais, culturais e de trocas intensas nas zonas de fronteira que não se regem pelas linhas estabelecidas nos mapas (UDELSMANN RODRIGUES, 2011).

As fronteiras de Angola

As fronteiras atuais de Angola foram delimitadas por acordos celebrados entre Portugal, França, Bélgica, Inglaterra e Alemanha/África do Sul. No caso da fronteira norte, ela foi delimitada depois de sucessivas negociações com a França, que culminaram com a assinatura de uma convenção, a 12 de maio de 1886, ratificada em Agosto de 1887.

Segundo Oliveira (1999),

[...] foi assim que nasceu o enclave de Cabinda, confinado na sua parte norte com o Congo Francês e, no restante, isto é, a sua maior parte, com o Estado Livre do Congo, que teve o cuidado de se instalar entre o seu limite sul e o rio Zaire, de forma a desalojar Portugal da margem norte. (OLIVEIRA, 1999, p. 107)

Resolvido o problema com a França, faltava resolvê-lo com a Bélgica. E assim foi rubricado um tratado entre Portugal e o Estado Independente do Congo, representando a potência colonizadora, para a delimitação da região da Lunda, assinado em Lisboa a 25 de maio de 1891. Mais tarde, um outro protocolo foi assinado em Bruxelas, em 5 de julho de 1913, aprovando a demarcação das fronteiras luso-belga de Cabinda e do paralelo de Nóqui ao Cuango. Para encerrar o dossier fronteiriço, foi assinada a Convenção de Luanda, de 22 de junho de 1927, entre Portugal e a Bélgica, que consagra a troca de territórios coloniais: a Bélgica cedeu o território do Dilolo, e Portugal o vale do rio Mpozo.

Oliveira (2010), em Os Caminhos Históricos das Fronteiras de Angola, salienta que a fronteira Leste levantou mais dificuldades. Os entendimentos foram conseguidos com a Grã-Bretanha, que assinou um acordo a 14 de novembro de 1890, estabelecendo um modus vivendi entre os dois países. Só no ano seguinte, a 11 de junho de 1891 foi assinado um tratado para definir as modalidades de convivência em África. A sentença arbitral do Rei de Itália sobre a questão do Barotze tornará possível delimitar a fronteira entre as duas colónias (Angola e Zâmbia, a então Rodésia do Norte), estabelecendo a fronteira atual do Nordeste de Angola que, de acordo com Matos (1964) foi suscitado pela assinatura, em Lisboa, do Tratado de 25 de maio de 1891.

Quanto ao estabelecimento da fronteira Sul de Angola, resultou de protocolos assinados entre Portugal e dois países, Alemanha e África do Sul. A 30 de dezembro de 1886 foi assinada em Lisboa a Convenção que estabelece os limites territoriais das colónias de Angola e do Sudoeste Africano (Namíbia). Com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e por força do Tratado de Versalhes (1920) que obriga este país a entregar as colónias às potências vencedoras (Inglaterra, França), a África do Sul assumiu, sob mandato da Sociedade das Nações, o controlo do Sudoeste Africano. Assim se explica que os dois países assinassem um acordo a 22 de junho de 1926 para resolverem a questão fronteiriça que ficou pendente no acordo de 1886 com a Alemanha.

Estes acordos consagraram a divisão de vários povos, nomeadamente: (i) Os Bakongo ficaram entre os dois Congos e Angola, pondo fim à unidade do Estado Kongo; (ii) Os Lunda, Baluba e os Cockwe ficaram divididos entre o Congo-belga, Zâmbia e Angola; (iii) Os Ovambos e os Helelos ficaram entre os territórios coloniais de Angola e do Sudoeste Africano (Namíbia). Estas divisões são a prova factual do efeito dos arranjos imperialistas na divisão político-administrativa de África, mesmo não impedindo os movimentos migratórios. As populações continuaram o seu movimento – agora mais lento e logo menos percetível – mas sem qualquer impacto nas fronteiras internacionais e sem alterar significativamente as relações culturais.

As características movimentações diplomáticas que acompanham a definição e o traçado das fronteiras em África, são, assim, particulares e, sobretudo, muito diversas do processo de demarcação territorial que ocorreu na Europa:

Um facto digno de sublinhar é que as fronteiras Europeias, contrariamente ao que se verificou noutros continentes, designadamente em África, resultaram de uma longa evolução e sobretudo de um equilíbrio de forças autóctones e não de uma ordem arbitrária imposta do exterior por conquistadores estrangeiros. (PERSON, 1972, apud OLIVEIRA, 2010: 13)

A importância da zona neutra na definição da fronteira Sul de Angola

Apesar de todas as movimentações políticas e diplomáticas, com o posicionamento ocidental face às soberanias africanas, que sustentam a definição das fronteiras africanas, o processo de partição territorial do continente foi indelevelmente marcado pelos conflitos militares do início do século XX, sobretudo a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Será com a derrota da Alemanha e o subsequente Tratado de Versalhes, que aquele país, que havia participado da corrida à ocupação de África, perderá os territórios coloniais em África, passando o Sudoeste Africano para a tutela da União Sul-Africana, território que na altura integrava os domínios britânicos a na África Austral.

Os territórios do Sudoeste Africano, colónia alemã, e ainda sem fronteiras definidas, foi palco de conflitos e recontros armados entre tropas portuguesas, alemãs e sul-africanas, auxiliadas por tropas britânicas, sendo a posteriori, a partir de 1919, colocados sob domínio britânico por força do Tratado de Versalhes (COELHO, 2014).

A Sul de Angola, os interesses em ocupar os recursos hídricos do rio Cunene eram múltiplos, com Portugal e a Alemanha a disputar o território. Os esforços e recursos aplicados pelas potências para dominar os recursos hídricos dão lugar a um caso inédito em África, a criação de uma zona neutra, que por muitos anos permaneceu litigiosa.

A partir desta conceção, o rio Cunene que havia já sido elemento chave para as pretensões de travessia da África e para as guerras coloniais, passa a ter outras utilidades, enquanto “objeto de barganha diante da diplomacia internacional, além de demonstrar ser a única solução para amenizar a aridez da Damaralândia” (PAULA, 2016, p. 139). De acordo com o autor, as discussões diplomáticas decorridas nos anos 10 do século XX, resultam de uma proposta avançada pela Alemanha, também ávida de dominar espaços com recursos hídricos suficientes para os seus intentos expansionistas, precisamente o rio Cunene, e para encontrar argumentos com elementos geográficos suficientes para definir uma “nova linha” que satisfizesse os seus interesses na região. (PAULA, 2016,p. 147)

Maia (1941), na obra Na Fronteira Sul de Angola, refere que a célebre Zona Neutra,

[…] representava uma enorme área de mais de 400 quilómetros entre o Cunene e o Cubango ou Roacaná e Cuangar, com uns 11 quilómetros de largura, correspondendo à série de rápidos e cataratas, do rio Cunene, desde Cazombue, que não passa de um rápido. (MAIA, 1941, p. 3)

O estabelecimento da Zona Neutra convinha aos interesses económicos da Alemanha, evitando o traçado de uma linha fronteiriça definitiva, porquanto se tratava de uma zona povoada, cuja sobrevivência da população dependia dos recursos hídricos do Cunene e das relações que pudesse estabelecer com os poderes instituídos em ambos os lados da “fronteira”. A Alemanha exercia, assim, uma influência cada vez maior entre e sobre os cuanhamas. Estes, por sua vez, desconfiavam da instalação de missões na região, e continuavam a transitar por ambos os lados em busca de oportunidades econômicas – nomeadamente as necessidades de mão-de-obra para a extração de cobre no Otawi, Sudoeste Africano, e o abastecimento de víveres à Damaralândia.

A zona neutra pretendia ser uma opção válida e que correspondesse aos interesses de Portugal e da Alemanha. Contudo, a experiência e o desenrolar dos acontecimentos vieram provar que os conflitos não terminariam.

Mais tarde, e já em plena vigência da ditadura em Portugal, ainda com uma fronteira conflituosa, mantêm-se os interesses coloniais sobre os recursos do Cunene. Portugal e a África do Sul estabelecem acordos e alianças políticas para o aproveitamento do rio, que darão origem, entre outros, aos empreendimentos do Ruacaná e de Calueque. Assim, segundo Maia (1941),

A proposta da zona foi feita para por meio dela, poderem obter metade da força motriz das quedas do rio Cunene, entre Cazombue e Roacaná, tal é a largura da mesma zona […] e fazer depender da passagem de metade de água do Rio Cunene através do Cuamato e Cuanhama até a lagoa Etocha. (MAIA, 1941, p.63)

Esta questão não tinha nada a ver com a delimitação da fronteira (MAIA, 1941), mas permitia aos mandatários do Sudoeste Africano disporem da região do Ovambo português, conseguindo o aproveitamento dos canais para conduzir a água para Sul, com potencial de irrigação da região. O acordo para a demarcação da fronteira Sul, celebrado entre Portugal e a União Sul-Africana a 22 de junho de 1926, centrava-se na utilização dos recursos hídricos do rio Cunene por parte do Sudoeste Africano, o que suscitava preocupações.

Com o tratado assinado entre Portugal e a União Sul-Africana em ata rubricada a 23 de Setembro de 1928 em Kakeri (nas margens do rio Cubango), a zona neutra deixa de existir oficialmente. Na sua litigiosa vigência foram estabelecidos vários acordos entre Portugal e a Alemanha e entre Portugal e a União Sul-Africana, que mais tarde dariam lugar à demarcação definitiva da fronteira entre Angola e o Sudoeste Africano. Conforme o Arquivo das Fronteiras (1928), a ata final referenciada definia a fronteira Sul de Angola com a colocação de marcos, cuja conclusão aconteceu somente em 1931. Ainda assim, na região a demarcar os acidentes geográficos eram comuns e a delimitação de fronteiras era pouco significativa. Os marcos foram numerados de 1 a 47, estando o marco 1 situado junto à catarata do Ruacaná, conforme decidido nos encontros entre portugueses e sul-africanos para a delimitação da fronteira, em 1920.

Procurando a “correção devido a convergência dos Meridianos se ia marcando o paralelo que ficava definido por marcos de cimento e pedra, colocados com intervalos de 10 quilómetros” (CONELHAS, 1929, p. 262). Mas tendo em conta a escassez de água – só poderiam contar com a das chuvas – foram provisoriamente abertas na “provável direção da fronteira, uma série de cacimbas até 100 quilómetros, que acabavam cheias na época das chuvas” (CONELHAS, 1929, p. 260), criando-se assim depósitos para consumo humano, o que permitia a prossecução dos trabalhos de marcação da fronteira.

A designada zona neutra, de iniciativa alemã, terá sido assim a antecâmara para o redesenho geopolítico da fronteira Sul de Angola, sujeita a um processo de acordos bilaterais entre Portugal e a União Sul-Africana, e como sempre, sem a participação das populações locais – que viam ser alterado o curso das suas histórias, sujeitando-se, quantas vezes, ao estatuto de estrangeiros dentro de um território pertencente a um antepassado comum.

Em suma, segundo Udelsmann Rodrigues (2017),

a zona foi incorporada ao território angolano, após vários anos de negociações e disputa entre Portugal, Alemanha e África do Sul. Os kwanhama usavam a zona neutra para sua vantagem, para evitar a regulamentação colonial (especialmente impostos), e manter os padrões de migração pré-coloniais, o que originou tensões entre os dois países colonizadores. Entretanto esta só ficou resolvida quando a zona em referência foi concedida a Portugal. (UDELSMANN RODRIGUES, 2017, p. 8)1

Apesar da experiência relativamente mais curta e superficial da colonização alemã2, o lado namibiano concentrou-se na integração das estruturas políticas administrativas, assente em políticas segregacionistas e métodos violentos de aproveitamento do trabalho manual (MELBER, 1985, apud UDELSMANN RODRIGUES, 2017, p. 8), enquanto que a colonização portuguesa se caracterizou por uma ocupação efetiva do território muito mais tardia do que o ocorrido no resto do país.

A fronteira Sul de Angola

A fronteira que separa Angola e a Namíbia foi, como a maioria das fronteiras africanas, estabelecida no quadro da Conferência de Berlim, com traçados ao longo dos rios e colocação de marcos, delineada por linhas retas e conjuntos de pontos de referência (UDELSMANN RODRIGUES, 2017, p. 6).

A delimitação e o estabelecimento da fronteira Sul de Angola resultam de acordos que vinham sendo negociados, em momentos e parcerias diferentes, por Portugal, Alemanha, Grã-Bretanha e União Sul-Africana (século XIX – XX). O processo decorreu de forma semelhante ao que vinha acontecendo noutras regiões da África colonizada, onde prevaleciam sempre os interesses das potências europeias e onde as soberanias e populações locais eram não só ignoradas como reprimidas com violência física (militar) e também simbólica (conceito e religião).

Sanches (1999, p. 29) refere que, antes da Conferência de Berlim a criação de colónias em África não constituía prioridade para o governo central alemão, porque “À Alemanha, segundo repetidas afirmações do primeiro-ministro Bismark, não interessava ter colónias em África. A Alemanha não teria política colonial”. Se a colonização de África não constituía parte importante da política externa alemã, tal não impedia que cidadãos alemães tivessem interesses e se instalassem na região austral do continente. Teria sido o interesse de privados a vincular a ação do Estado, contrariamente à presença portuguesa, que atrai para África colonos empobrecidos cuja presença onera os encargos do próprio Estado.

A convenção de 1886, relativa ao estabelecimento da zona neutra, ilustra o percurso para a delimitação de fronteiras, e em consequência de zonas de influência e de ocupação efetiva das potências coloniais, com a Alemanha a reivindicar partes do território em disputa (OLIVEIRA, 2009). Assim, a 1 de dezembro de 1885, o embaixador alemão em Lisboa apresentou um documento-proposta, no qual o seu governo reconhecia que a linha de limite entre o território de Angra Pequena, sob protetorado da Alemanha, e a colônia portuguesa de Moçâmedes, carecia de fixação definitiva, solicitando também que Portugal negociasse para determinar com mais rigor as suas esferas de interesses na costa Sudoeste de África. Quinze dias depois, Portugal responde comunicando a necessidade de se definirem com maior precisão as fronteiras das possessões dos dois países, para que estes pudessem exercer o seu poder na referida região de África.

Pereira (2010, p. 56) faz referência ao surgimento de “turbulências” de carácter militar, diplomático e administrativo cuja solução era remetida ou à arbitragem internacional ou a acordos bilaterais. Neste último caso encontra-se a Convenção Luso-Alemã assinada em 1886 que visava, segundo Paula (2016), acentuar debates mais que resolver os diferendos entre Portugal e a Alemanha para os limites da fronteira Sul de Angola e o Norte do Sudoeste Africano Alemão. Esta situação deve-se ao facto de a colonização alemã em África ter sido, de certa forma, “pressionada” por situações precedentes criadas pelos seus cidadãos que comerciavam e negociavam o direito sobre as porções de território conseguidas por iniciativa própria, na relação com as autoridades locais do Sudoeste Africano.

A experiência de abril de 1883, em que, a título individual, o alemão e “negociante Luderitz adquiriu aos chefes indígenas a baía de Angra das Voltas e vastas áreas adjacentes, criando o núcleo do Sudoeste Africano Alemão” (SANCHES, 1999, p. 29), marcou as pretensões portuguesas apresentadas à Conferência de Berlim. Permitirá à Alemanha declarar esta região como seu protetorado, atitude que deixará preocupado os britânicos residentes na África do Sul, que entretanto já ocupavam Walvis Bay, no Sudoeste Africano, afetando significativamente os interesses portugueses. As fronteiras estabelecidas em contexto de disputas diplomáticas seriam ratificadas muito mais tarde por acordos bilaterais entre autoridades oficiais de Portugal e da Alemanha, num processo que terminou já com o Sudoeste Africano sob a dominação da União Sul-Africana.

Segundo Aparício (2000, p. 224), as rivalidades luso-alemãs dever-se-ão a questões ligadas às disparidades geográficas, à riqueza do solo e minerais, sendo que a “região que hoje pertence à República da Namíbia é muito mais árida e seca e não possui água, enquanto do lado Norte (Angola) da Fronteira, corre com abundância”. Daí que a pretensão alemã ao desvio das águas do Cunene tenha sido uma questão que se arrastou até à delimitação definitiva da fronteira Sul de Angola, que viria a ocorrer em 1927-1928. A presença portuguesa e alemã na região austral de África fará com que a Sul Angola tenha uma única fronteira, a República da Namíbia (atualmente) com a qual partilha e gere, no âmbito de acordos bilaterais, os recursos que os dois povos clamam face à repartição desigual de recursos, resultado de percursos históricos diferentes.

Para Portugal e para a Alemanha, a posse e aproveitamento hídrico do rio Cunene constituíam motivação suficiente na disputa deste espaço africano (PAULA, 2016). A aferição que se faz é de que ser-se dono e senhor do rio era garantia para amenizar o problema cíclico da seca a Sul de Angola e Norte do Sudoeste Africano, além de poder dar ao rio outras utilidades, conforme viria a acontecer na segunda metade do século XX. As negociações tendo o rio Cunene como pano-de-fundo, face à necessidade de habitabilidade da região, justificaram a demora da delimitação das fronteiras do Sul de Angola com o Sudoeste Africano Alemão.

Segundo Conelhas (1929), a comissão portuguesa logrou, em 1920, o reconhecimento da fronteira no paralelo do Ruacaná por parte da comissão inglesa, porém a fronteira não foi delimitada nesse ano. Era, no entanto, pretensão alemã desviar o curso do Cunene para Etosha pan pelo que, para esse efeito, a fronteira deveria estender-se mais para Norte. Outra das pretensões que as autoridades alemãs pretendiam acomodar era a “construção da Via Férrea desde as minas de Tsumeb e Otavi até Porto Alexandre” (APARÍCIO, 2000, p. 225).

Nos anos 20, os sul-africanos retomam o projeto de desviar as águas do rio Cunene, enfrentando a oposição dos portugueses, que apontavam as consequências que poderiam advir para a região no concernente ao clima e à vegetação. O coronel Carlos Machado de Faria e Maia, que integrou a equipa de demarcação da fronteira Sul, efetuou estudos na região e concluiu que “o desvio das águas do Cunene deveria ser feito por uma companhia portuguesa desde que não prejudicasse o lado angolano” (MAIA apud APARÍCIO, 2000, p. 228).

Iniciam-se, segundo Conelhas (1929), os procedimentos para a delimitação, e a questão mais premente era sanar a dúvida sobre o paralelo que definia a fronteira entre os rios Cunene e o Cubango, uma vez que as cartas alemãs conferiam a esse paralelo proveniência diferente daquela que referenciava a convenção de 1886. Não obstante os cuidados e o tempo julgado necessário para que portugueses e alemães definissem espaços geográficos onde os seus interesses prevalecessem, a Convenção de 1886 não resolveu todos os problemas.

Para Sanches (1999), tal desvela o longo e atribulado processo negocial que envolveu a delimitação da fronteira Sul de Angola. Com a assinatura em 1886, de um tratado de limites ou, mais concretamente, de uma convenção intitulada “Declaração Relativa à Delimitação das Possessões Portuguesas e Alemães na África Meridional”, a Norte do paralelo 18º, pelo curso do rio Cunene, Portugal manteria soberania sobre Angola e, a sul surgia, ou melhor, se consolidavam os interesses alemães na Colónia do Sudeste Africano Alemão.

Na época, o contexto passou a caracterizar-se pelo seguinte: (i) demonstração dos interesses alemães pelas matérias-primas de que a sua indústria necessitava para se consolidar como potência industrial; (ii) o surgimento de uma política colonial alemã; (iii) algum recuo dos interesses e poder dos portugueses em decorrência da sua fraqueza como potência; (iv) o desenvolvimento de políticas alheias aos interesses dos africanos, que passaram a viver em nações e espaços separados; (v) os africanos deixaram de ser donos dos seus recursos e passaram a absorver culturas estranhas, perdendo assim a sua soberania e parte da sua identidade.

A partir de 1915, o cenário político-colonial do Sudoeste Africano mudou substancialmente. A Alemanha, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, perde a hegemonia nesta região a favor das autoridades inglesas e portuguesas. Portugal tem agora um novo interlocutor, os sul-africanos, com os quais não é mais fácil negociar, para a demarcação das fronteiras (PAULA, 2016). Assim sendo, entre 30 de julho e 3 de agosto de 1920, as delegações reuniram-se em Ruacaná para realização dos trabalhos preliminares da demarcação da fronteira.

A discussão abriu ainda com o problema do ponto da colocação do primeiro marco. Portugal não tinha dúvidas e defendia a sua identificação com o “marco João de Almeida”, latitude de 17º 23’ sobre a descida dos 70 m da grande catarata, que satisfazia as condições do convénio de 1886. Os sul-africanos preferiam um local no começo dos primeiros rápidos, a montante da queda; acabaram, contudo, por aceitar a proposta portuguesa, mas mantiveram-se intransigentes quanto ao problema da passagem de águas do Cunene para a grande lagoa do Etocha para irrigar a Damaralândia (PAULA, 2016).

Segundo Conelhas (1929) a descrição definitiva da delimitação nesse extremo passou a ser a seguinte:

Estava delimitado o sul de Angola entre-os-rios Cunene e Cubango, marcos de cimento e pedra assinalando a fronteira de 10 em 10 quilómetros e, unindo estes, uma larga estrada que por acordo entre os dois países se manterá permanentemente limpa de mato e reservada ao trânsito exclusivo de automóveis. Está longa estrada. Com cerca de 450 quilómetros ficará sendo uma das mais notáveis de toda a província de Angola. As comunicações com o baixo Cubango que até à data se faziam pelo Norte, seguindo o percurso Lubango-Quipungo-Capelongo Cassinga-Caiundo-Cuangar passam a fazer-se, sempre por afeiçoada estrada de automóveis, por Lubango-Gambos-Humbe-Ngiva-Cuangar, o baixo Cunene em comunicação directa com o baixo Cubango. (CONELHAS, 1929, p. 273)

Do ponto de vista português, a delimitação da fronteira foi considerada um “triunfo diplomático”, uma vez que já tinha sido tentada a sua efetivação com a Alemanha, com a Inglaterra e com a União Sul-Africana (MAIA, 1941, p. 90).

Como a resolução do diferendo deveria basear-se no tratado luso-alemão de 1886, a Sociedade das Nações culpabiliza Portugal pela morosidade do processo, quando a ação portuguesa estava limitada pela anuência da Inglaterra. Esta potência, numa atitude reservada e um tanto desinteressada, teria delegado à União Sul-Africana a sua resolução, construindo um triângulo diplomático nas negociações (MAIA, 1941, p. 90). No quadro desse processo de negociações, a 28 de abril de 1918 Londres comunica que o governo inglês aceita a linha de delimitação para o Sul de Angola proposta por Portugal, com a condição de a União Sul-Africana ter garantia de acesso à água do rio Cunene, indispensável para irrigação e produção de em energia elétrica (BRAZ, 1943, p. 315-329). Tal não significa, mesmo assim, a resolução plena da questão, pois as autoridades da União Sul-Africana só viriam a ratificar os diferentes acordos de demarcação de fronteiras a 28 de abril de 1931.

A fronteira Angola-Namíbia3 resulta de um complexo processo ocorrido no período colonial. A linha fronteiriça tem marcos de 10 em 10 quilômetros, num total de 34. Passando pelos locais com maior fluxo de pessoas e bens, constatamos que o marco 1 – o início da fronteira – localiza-se em Ruacaná, no município do Curoca; os marcos 3 a 14 pertencem ao município de Ombadja; os marcos 14 a 34 localizam-se no município do Namacunde; o marco 35, área do Olupale, situa-se na província do Cuando Cubango, estando, porém, sob guarnição da polícia do Cunene. No percurso efetuado passamos pelo posto fronteiriço correspondente ao marco 16 (zona comercial, do lado angolano), o posto de guarda-fronteira do marco 19, em Santa Clara, constituindo o lado angolano da fronteira, e Otchikango, do lado namibiano.

Porque as fronteiras artificiais da África causam tantos conflitos?

Figura 1 – Marco 1: Ruacaná, marco referencial para o início da delimitação da fronteira terrestre Sul de Angola4
Fonte: Autora, na primeira deslocação ao terreno na província do Cunene (2014).

Porque as fronteiras artificiais da África causam tantos conflitos?

Figura 2 – Marco 1: Ruacaná, marco referencial para o início da delimitação da fronteira terrestre Sul de Angola
Fonte: Autora, na primeira deslocação ao terreno na província do Cunene (2014).

Porque as fronteiras artificiais da África causam tantos conflitos?

Figura: 3 - Marcação da linha divisória fluvial da fronteira sul
Fonte: Autora, na primeira deslocação ao terreno na província do Cunene (2014).

As Fronteiras Pós-Coloniais

As linhas demarcadoras dos espaços de jurisdição nacionais acompanham a constituição e o desenvolvimento dos Estados. A noção de limites fronteiriços de um Estado desenvolve-se, também, em função da administração económica, enquanto necessidade de controlo dos recursos naturais escassos ou abundantes, num lento processo de consolidação, à medida que se avançava no campo do direito positivo, nomeadamente do direito internacional.

Estudos efetuados sobre as fronteiras de Angola, e de África no geral, integram-se, por norma, no âmbito das ciências sociais, da geografia, da diplomacia e da política internacional, áreas que têm vindo a produzir vasto conhecimento sobre as fronteiras, sobre a forma como estas foram definidas ou estabelecidas e respetivas consequências para os africanos.

Nos anos 60, quando a maior parte dos países africanos alcança a independência, a questão das fronteiras foi gerida tendo como foco a redução do potencial de conflituosidade entre as nações emergentes (Heimer, 2001). Os Chefes de Estado presentes na constituição da Organização de Unidade Africana (OUA) optaram pela manutenção das fronteiras territoriais resultantes de séculos de dominação estrangeira e de ocupação colonial:

Passados mais de cinquenta anos, Heimer (2001) considera que se foram criando condições para um debate, interrogando-se sobre a manutenção (ou não) das fronteiras africanas herdadas do colonialismo – por princípio, devem as unidades administrativas criadas pelas metrópoles coloniais ser mantidas, tal e qual, sob a forma de países independentes ou é possível alterá-las; qual a eventual conveniência em introduzir alterações, maiores ou menores, pontuais ou generalizadas, aos traçados reconhecidos.

A ideia de que a OUA preveniria e evitaria conflitos fronteiriços foi defendida pelo antigo Secretário-Geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali: “o princípio ‘uti possidetis iuris’ reafirmado no Cairo em julho de 1964, permitiu evitar os numerosos conflitos fronteiriços” (BOUTROS-GHALI, 1991, apud OLIVEIRA, 2005, p. 44). É precisamente dentro dessas fronteiras, designadas por muitos autores como ‘artificiais’, reconhecidas pelas Nações Unidas e ratificadas pela OUA, que se constroem os 545 países africanos.

Na verdade, os princípios que nortearam a aceitação das fronteiras coloniais pelos Estados surgidos da descolonização não são unanimemente aceites, gerando, pelo menos, três correntes ideológicas: (i) nos chamados nacionalistas, que contestavam a delimitação por ser contra os interesses das populações locais; (ii) nos que defendiam a manutenção de um certo status quo federalista; e, (iii) nos que se mantinham numa tradição panafricanista, uma África sem divisões políticas. Esta última concretizava-se pela sugestão de uma união de Estados africanos onde as fronteiras só teriam funções administrativas internas. Esta corrente é representada historicamente por Francis Kwame Nkrumah, tendo tido no antigo Presidente da Líbia, Muammar Khadafi, um dos mais ferverosos adeptos.6

Ainda nos primórdios da OUA, segundo Luís Castelo Branco (2013) em seu texto O Mito das Fronteiras em África, foi necessário ajustar algumas das fronteiras coloniais. Foi o caso, por exemplo, da criação da Tanzânia, resultante da junção de Tanganica ao Zanzibar, e do Mali e da Mauritânia, que aceitaram alterar as fronteiras para respeitar os hábitos, costumes e história das tribos nómadas; em 1975, o Senegal e a Gâmbia ajustam a sua fronteira. O autor analisa os receios subjacentes a um empolamento expansionista/revisionista de alguns países africanos, que propalavam a ilegitimidade de certos tratados assinados anos/décadas antes e o modo como se construiu a configuração política de África. A perspetiva revisionista contempla a revisão das fronteiras, tendo em consideração realidades étnicas, religiosas e culturais. Já os defensores do status quo alegam as obrigações internacionais a que os Estados estão sujeitos.7

A dinâmica da pesquisa histórica relativa à constituição das fronteiras das nações africanas não nos permite traçar conclusões definitivas e remete-nos para posteriores estudos especializados.

Mais desconexa é a alegação da manutenção das fronteiras com o fundamento nas infraestruturas implantadas no período colonial: “Toda a infraestrutura dos Estados africanos estava ligada ao sistema colonial: estradas, portos, cidades, comércio, educação, linguagem e outros fatores foram construídos para ligar os territórios a suas metrópoles” (PINTO, 2007, p. 226).

O traçado das fronteias deveria, nestes termos, manter-se, numa perspetiva materialista, em detrimento de uma configuração mais assente em critérios culturais.

Augustoni e Viana (2010) argumentam que, mesmo com percursos de certo modo diferentes, os processos de demarcação das fronteiras em África foram sempre conflituosos, levando populações consanguíneas a separarem-se em diferentes países como se fossem de origens diferentes. Esses processos impostos desde fora, modificaram o status quo de África – sobretudo em zonas onde o contacto entre europeus e africanos era mais intenso e permanente – pois estavam eivados de frustrações, de desajustamentos, de confrontações, de desconfortos. Com populações desprovidas de recursos e da mobilidade, estava criado um cenário propício à erupção de crises, das quais os africanos tardaram em recuperar.

Para Döpcke (1999),

[...] cortavam através de suas fronteiras grandes regiões culturais e linguísticas e não se distinguiram por homogeneidade étnica. Nesse sentido as fronteiras modernas na África parecem até menos ‘artificiais’. A multietnicidade e as culturas e etnias politicamente divididas representam uma forte tradição africana desde a época pré-colonial sobrevivendo até aos dias actuais (DÖPCKE, 1999, p. 100).

Reflexão final

O continente africano conheceu diversos conflitos inter e intra-estatais. Em Angola, onde o processo de independência foi mais tardio do que na maioria dos países do continente, e com um complicado processo de descolonização, também há casos de populações separadas (por exemplo, os Chokwes nas Lundas e Moxico, os Kwahamas no Cunene). O traçado da fronteira Sul de Angola provocou mudanças e exigiu adaptações às populações e aos Estados sem, porém, que eclodissem conflitos graves.

Autores como Döpcke (1999), defendem que a etnicidade ou multietnicidade, em si, não são fatores determinantes dos conflitos em África, embora possam estar na sua origem ou a eles ligados.

África continua a ser, mesmo nos tempos modernos, o continente com elevado número de conflitos. Todavia, nem sempre é válido o argumento de que são conflitos com origem exclusivamente étnica. O autor reforça esta ideia, argumentando que:

[...] a etnicidade e a identificação étnica em si não podem ser responsabilizados pelos conflitos. A própria tradição multiétnica dos Estados africanos pré-coloniais e os exemplos de coexistência pacífica de diversas etnias […] as fronteiras dos grandes Estados ou impérios nunca englobaram apenas uma etnia ou grupo cultural eram máquinas de integração de grupos, sociedades, chefias de diversas origens, tradições etc. (DÖPCKE, 1999, p.100)

Para o efeito, Döpcke (1999, p. 100) refere que os conflitos são também causados pelas “interpretações adversas das delimitações feitas durante a época colonial. São consequências das imperfeições técnicas e da maneira fortuita com que as potências coloniais demarcaram seus domínios”.

África contemporânea herdou do colonialismo, segundo Robert (2013), Estados independentes, mas assentes numa multidão de tribos separadas por fronteiras políticas, construídas a margem das relações seculares intra-africanas, num quadro em que a soberania não era exercida num único território, seguindo ‘fronteiras’ negociadas e tomadas como invioláveis.

Para Lousada (2010a, p. 127), nos períodos anteriores à fase decisiva do colonialismo, após a Conferência Internacional de Berlim, não se colocava com tanta acuidade a questão das fronteiras no sentido do direito positivo internacional. Os espaços políticos criavam poucos problemas às questões étnicas, linguísticas e culturais entre os africanos. Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a África das independências, sem esquecer totalmente o seu passado, tem procurado encontrar-se gerando o mínimo de conflitos possível. Lousada (2010a) socorre-se de Joaquim Chissano, antigo presidente de Moçambique, com o alerta de que a má gestão das fronteiras pode ser fonte de conflitos. É nesse sentido que devem ser vistos os esforços da União Africana, que chegou a apontar 2012 como data limite para a clarificação das fronteiras. A dinâmica das relações internacionais em África impõe um pensamento em que se perspetive (obviamente, a longo prazo):

[...] a criação da Comunidade Económica Africana, isto é, busca-se a anulação de possíveis conflitos interestatais, devido à competição pelos recursos em zonas de fronteira de suserania difusa, mediante a anulação geográfica das fronteiras numa ótica de espaço alargado a nível económico. (LOUSADA, 2010a, p. 127)

A União Africana, tal como os modernos Estados africanos individualmente considerados, deve tratar as questões ligadas a fronteiras num espírito de cooperação, evitando que se resvale para o que Lousada (2010a, p. 127) considera “a ânsia de acesso a recursos é óbvia e o carácter místico de posse territorial perene as fronteiras (…) ou são geridas com parcimónia ou o conflito pode surgir como solução, situação indesejável para África […]”.

Muitos destes recursos e a sua exploração, dada a sua localização, colocam questões no âmbito da gestão transfronteiriça. Daí que sejam vários os assuntos passíveis de serem tratados no âmbito das relações internacionais. As diferentes organizações e conferências internacionais e regionais, como, por exemplo, a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), constituem oportunidades de concertação e de desenvolvimento sustentado, quantas das vezes permitindo, ou então estimulando, o incremento das relações culturais e comerciais entre populações que partilham, ou não, fronteiras e histórias.

As fronteiras das possessões coloniais em África foram demarcadas num longo e difícil processo, quer para africanos quer para os europeus, de avanços e recuos das linhas negociadas entre estes, à medida que uma região se revelava mais próspera e com maior potencial de exploração de recursos.

Por que as fronteiras artificiais da África causam tantos conflitos?

Os conflitos na África são consequências da divisão territorial estabelecida pelos colonizadores europeus, que não levaram em consideração as diferenças étnicas e culturais da população local, separando grupos étnicos que vivam em harmonia e colocando em uma mesma área, grupos rivais.

O que são fronteiras artificiais Qual sua relação com os conflitos na África?

São as fronteiras que foram traçadas na época do imperialismo europeu,em que simplesmente foi traçada uma linha no mapa sem ver o relevo e as populações locais.

Por que a África possui tantos conflitos?

Os conflitos na África são basicamente motivados por disputas territoriais; golpes de estados, que geram crises políticas; rivalidades tribais, motivadas por questões étnicas ou religiosas; disputas por água e recursos minerais; e imersão do povo na miséria.

Quais as consequências das fronteiras artificiais para os países africanos?

Resposta. Consequências – Conflitos violentos motivados por diferenças étnicas ou religiosas e ascensão de ditadores sanguinários ao poder.